Por Norma Gabriel Brito*
Algumas questões artísticas estão postas nesse momento de crise sanitária mundial provocada pelo coronavírus Covid-19, juntamente com suas infinitas quarentenas. O que é ser contemporânea(o), hoje? E ópera brasileira, existe?
A discussão sobre o contemporâneo tem ocupado o filósofo italiano Giorgio Agamben (1940). Ele parte de um conceito proposto por Friedrich Nietzsche, o de intempestividade, e da ideia do filósofo alemão a respeito da possibilidade de se estar fora do tempo e poder ser contrário a ele, mesmo que nele presente. De forma resumida, podemos dizer que Agamben faz a si mesmo uma pergunta: como o que é intempestivo, inadequado, que está fora do tempo próprio, pode ser característica do contemporâneo?
Para ele, a contemporaneidade é uma relação singular com o tempo, uma vez que contém um movimento de aproximação e afastamento, de modo que os que estão imersos completamente em seu próprio tempo não se podem nomear ou considerar contemporâneos porque não conseguem vê-lo. Nas suas palavras, “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar em seu próprio tempo, para nele enxergar não as luzes, mas sua escuridão”, como afirma no livro O que é contemporâneo?
Pensar o contemporâneo foi um dos objetivos da Fundação Clóvis Salgado ao trazer à luz o debate e o diálogo sobre a ópera no Brasil atual, propondo inspiradas e ricas conversas com inúmeros e variados profissionais do universo da ópera, com o intuito de debater a importância de se criar e desenvolver ópera brasileira hoje. E o fez buscando abordar um movimento de aproximação com o passado histórico da ópera, mas também procurando se afastar dos títulos e meios de produção icônicos, debatendo o que seria uma ópera brasileira cantada em português com temas que discutam nossa sociedade.
Assim nasceu o Ateliê de Criação de Dramaturgia e Processos Criativos, intencionando produzir cinco libretos em português inspirados no romance O grande mentecapto, do autor mineiro Fernando Sabino. Os textos foram, em seguida, musicados por compositores convidados. E uma das novidades e desafios do projeto esteve justamente na diversidade de estilos tanto dos autores da música quanto dos libretistas.
Os autores Djalma Thürler, Julliano Mendes e Luiz Eduardo Frin vêm das artes cênicas e escrevem para a cena teatral; Ricardo Severo tem formação musical e prática em escrita de libreto para o teatro musical; Bruna Tameirão é poeta e musicista. Para trabalhar com eles, foram convidados Denise Garcia, Antonio Ribeiro, Maurício de Bonis, André Mehmari e Thais Montanari, compositores preocupados em repensar a união entre texto e música à luz da criação musical contemporânea.
Reflexões a respeito da simbiose entre texto e música vêm de longa data. Entretanto o inusitado desta façanha está presente na fricção entre segmentos artísticos distintos, por exemplo: adaptação para libreto de um romance, no caso o romance de Fernando Sabino; à qual se soma a movimentação cênica criada por meio da dança, da encenação, do cenário, do corpo, da atuação, enfim, uma profusão de linguagens magistralmente conduzida pela curadoria do Maestro Gabriel Rhein-Schirato e a encenadora Lívia Sabag, com consultoria dramatúrgica do escritor Geraldo Carneiro.
As cinco curtas óperas resultantes do ateliê formaram o espetáculo Viramundo, uma ópera contemporânea, apresentado no Palácio das Artes no dia 21 de dezembro e ao qual tive acesso por meio de gravação em vídeo, criada para divulgação da obra na internet. Viramundo, uma ópera brasileira a nos mostrar a derrocada de nosso herói fora do tempo criado por Fernando Sabino: Geraldo Boaventura.
Na abertura do espetáculo, nos deparamos com Os Circunvagantes, de Luiz Eduardo Frin e Maurício De Bonis, já anunciando a trajetória dramática de Viramundo numa narrativa épica, acentuada pelos metais e a percussão da orquestra e personificado na figura de três palhaços cada um carregando sua mala: Pancada, Lelé e Aluado, muito bem interpretado pelos três tenores Giovanni Tristacci, Flávio Leite e Ramon Mundin.
A diretora cênica, Rita Clemente, com habilidade e sutileza, conseguiu apresentar a atmosfera trágica, e alguns breves momentos acentuados pela ironia e traços festivos da tradição popular contida nas óperas. De maneira perspicaz, sintetizou esse universo ao escolher dois elementos cênicos para representar a inadequação, a “intempestividade” de Viramundo como aquele que “é fora do próprio tempo”, segundo Agamben. O primeiro é a mala, objeto pessoal de quem vaga e que, de mão em mão, passa pelo povo carregando a vida e seus pertences, em uma aproximação entre o passado e o presente. O segundo, o trem personificando a vida que o carrega, levando-a de um canto a outro, um jogo em direção ao encontro com a escuridão: o julgamento, a finitude do anti-herói.
Com boa interpretação e técnica vocal, o tenor Giovanni Tristacci consegue integrar corpo e voz, permitindo que se relacionem gesto e canto, texto e música com bastante organicidade e clareza na dicção, tornando o texto compreensível para o espectador.
Por sinal, é preciso ressaltar a boa resolução e adequação do trabalho cênico e vocal dos cantores e cantoras nas demais óperas; chama atenção ainda a qualidade na composição física e a belíssima movimentação coreográfica do assistente de direção Tiago Camargo executada pelo Ballet Jovem: gestualidade simples, econômica e eficiente.
Na segunda ópera, de Djalma Thürler e Denise Garcia, é excelente a utilização do recitativo como recurso ora narrativo, ora musical, contribuindo para contar a história. A obra nos instiga já pelo título, Não gosto de corpo acostumado, que carrega uma ironia ao colocar em cena todo tipo de “gentes” do mundo.
Interessante de se ver a estranheza no corpo, na movimentação e nas vozes do coro e do ballet, como se representassem um bando de passarinhada falando, cantando outra língua: cacofonia. E bem pontuada pelas flautas, oboés, clarinetes até o surgimento, ou melhor, aparição do trem personificado na movimentação circular do ballet e volta do coro, parado no centro do palco cantando, referenciando ao Trenzinho caipira de Heitor Villa Lobos, Trem de Ferro Café com Pão, de Manuel Bandeira.
Num instante súbito, a relação tempo/espaço parece sofrer uma suspensão, como se Viramundo sofresse diante si uma epifania, um chamado para entrar no outro mundo: chegamos às Três mortes de Viramundo, a terceira ópera, de Ricardo Severo e André Mehmari, que tem como destaque um delicado arioso que nos remete ao barroco mineiro, cantado e interpretado de maneira belíssima por Tristacci.
De forma solene, através de uma iluminação difusa e misteriosa, passamos para a quarta ópera, Viramundo, Viraflor de Julianno Mendes e Antonio Ribeiro. No início, um momento mais próximo da tradição em ópera, representado pelo Kyrie eleison Geraldo. Ele é interpretado por três mulheres, com destaque para a sutileza de Mariana Redd, que encontrou um caminho vocal bastante interessante que parece transitar entre o Belcanto e o canto popular, valorizando a dicção e compreensão do texto. Aqui, a iluminação de Régelles Queiroz, o cenário de Miriam Menezes e o figurino de Sayonara Lopes compuseram de forma harmoniosa e elegante o que sugeria o libreto.
Em cada tempo uma moral, uma história e, finalmente, o julgamento. A quinta ópera se inicia com um tom de filme de terror e suspense, interpretado de forma brilhante por Sylvia Klein e Ramon Mundin. Bruna Tameirão aqui deixa marcada e explicitada a crítica a toda forma de opressão e exclusão do indivíduo, ao fascismo e ao totalitarismo caracterizado na forma do juiz déspota, interpretado por Pedro Cortes, que desqualifica, oprime e evidencia todos os defeitos de Geraldo Viramundo, uma vez que, nas palavras de Hannah Arendt, reproduzidas no libreto, “toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história.”
Pudemos, enfim, assistir a cinco óperas curtas brasileiras, nas quais cada autor, autora, compositora e compositor buscaram inspiração no romance de Fernando Sabino para assinalar pontos de vista diferentes sobre a obra, cada um com suas particularidades, pois ser contemporâneo é ter uma relação singular com o tempo, diria Agamben. E o saldo é a esperança de poder vê-las novamente, de preferência presencialmente, e torcer para que outras óperas brasileiras cantem e se espalhem por outros rincões. Salve Viramundo! Evoé.
* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio
![Cena de "Viramundo, uma ópera contemporânea" [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/Viramundo_Guilhermina.jpg)
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