Violinista continua miraculoso e imaculado. O Stradivaris ex-Kreutzer de 1727 continua soando gloriosamente, sem perder a doçura nem nos momentos mais heroicos ou ásperos, e com uma região grave com a ressonância aveludada de uma viola
O transeunte desavisado que passasse pela rua Nestor Pestana por volta das 22h da última quinta-feira, dia 15, acharia que algum astro pop acabara de se apresentar no Teatro Cultura Artística, tamanha a quantidade de pessoas que aguardava a saída dos artistas na porta do estacionamento da casa. Fosse mais atento, o passante notaria a quantidade expressiva de estojos de violino dentre os fãs. O violinista Maxim Vengerov (pronuncia-se “venguérov”) e a pianista Polina Osetinskaya (pronúncia proparoxítona, com acento no “i”) fizeram por merecer todo o entusiasmo com que foram calorosamente acolhidos pelo público paulistano. Seu recital foi daqueles que se inscrevem indelevelmente na memória de todos que tiveram a sorte de presenciar.
Recordo-me com imensa nostalgia do assombro que Vengerov produziu em 1994 quando, aos 20 anos, no Theatro Municipal de São Paulo, solou o concerto de Mendelssohn com ninguém menos que a Orquestra Concertgebouw de Amsterdã, sob a batuta de Riccardo Chailly (sim, houve uma época em que as grandes sinfônicas internacionais vinham regularmente ao Brasil). Depois ele voltou em recitais acompanhados de piano, no antigo Cultura Artística e na Sala São Paulo. Entre 2007, veio a fase mais perigosa da carreira do virtuose siberiano que começou a tocar aos cinco anos de idade, e lançou-se na arena internacional aos dez: um longo período de quatro anos de inatividade para resolver um problema de saúde no ombro. Vengerov começou a reger, Vengerov começou a tocar viola. Mas e o violino?
Continua miraculoso e imaculado. Sim, ele mexeu na técnica. Não, ele não perdeu nada da excelência. O Stradivaris ex-Kreutzer de 1727 continua soando gloriosamente, sem perder a doçura nem nos momentos mais heroicos ou ásperos, e com uma região grave com a ressonância aveludada de uma viola.
Puxando pela memória, não me lembro de ter assistido a um recital de música de câmara em que o solista tenha tocado o programa inteiro de cor. O de cor, aí, vale tanto na acepção literal – de memória – quanto na etimológica – de coração. E as considerações técnicas parecem supérfluas, pois todos os parâmetros se encontram dominados à perfeição. Só é possível enumerar louvores. Mão direita? Impecável, o arco, como brincava um músico, parecia ter 50 cm a mais. Mão esquerda? Facilidade inverossímil. Harmônicos? Impossivelmente precisos e sonoros – parecia que ele estava assobiando, no chiste do mesmo músico. Vibrato? Uma master class.
A primeira parte do programa tinha um “sujeito oculto”: Robert Schumann (1810-1856). Nenhuma obra dele foi tocada, mas o compositor era o fio que unia sua esposa, Clara Schumann (1819-1896) ao amigo Johannes Brahms (1833-1897) – inclusive como coautor da célebre Sonata FAE, obra colaborativa em homenagem ao violinista Joseph Joachim, da qual Vengerov interpretou o Scherzo (de autoria de Brahms) com uma verve inigualável.
Antes, vieram as Três romanças op. 22 de Clara (por sinal, também dedicadas a Joachim) – uma bem-vinda inclusão de mulher compositora, que mereceu uma interpretação que tratava cada uma dessas miniaturas com meticulosidade de joalheiro.
O ápice da primeira parte foi a terceira e derradeira sonata para violino de Brahms – concluída em 1888, no último verão que o compositor viria a passar às margens do lago helvético de Thun. Consagrada a Hans von Bülow (o regente e pianista que colocou com Brahms como o “terceiro B” da música germânica, junto com Bach e Beethoven), a última partitura brahmsiana com dedicatória tem quatro movimentos – em vez dos três das duas sonatas anteriores. É música madura, de autor maduro – e tocada com muita maturidade.
Com sua arquitetura meticulosa e contraponto estruturado, a sonata de Brahms é um Lego montado de um jeito no qual mexer em qualquer uma das peças significa um risco de fazer toda a estrutura ruir. Vengerov e Osetinskaya davam-se ao luxo de brincar com o tempo e a duração das notas da obra. O resultado foi de uma flexibilidade e um frescor encantadores
Aqui é o momento de falar dessa tremenda camerista chamada Polina Osetinskaya – muito mais do que mera acompanhadora, uma verdadeira parceira de duo. Personalidade fora dos palcos Osetinskaya já mostrou, ao criticar com veemência a invasão da Ucrânia por seu país, a Rússia. Ao teclado, ela não é menos assertiva, demonstrando a sedutora sonoridade da escola russa do piano ao lado de impressionantes recursos técnicos e uma enorme criatividade para buscar uma paleta expressiva de cores.
Com sua arquitetura meticulosa e contraponto estruturado, a sonata de Brahms é um Lego montado de um jeito no qual mexer em qualquer uma das peças significa um risco de fazer toda a estrutura ruir. Pois bem: com muita coragem, Vengerov e Osetinskaya davam-se ao luxo de “brincar” com o tempo e a duração das notas da obra. O resultado – possível apenas quando se conjugam excelência técnica, afinidade entre os parceiros e ensaios exaustivos – foi de uma flexibilidade e um frescor encantadores.
Só o Brahms já teria valido a noite. Mas, após o intervalo, veio a figura mozartiana da música russa no século XX: Serguei Prokófiev (1891-1953). Curiosamente, com duas peças não escritas originalmente para violino, mas depois transpostas para o instrumento.
Prokófiev tinha emigrado (legalmente e com passaporte, e não fugido, como às vezes se afirma) para o Ocidente após a Revolução de 1917 e tentava a sorte nos EUA com a ópera O amor das três laranjas (que estrearia em Chicago, em 1921). Nessa época, ele escreveu cinco canções sem palavras para sua amiga, a soprano ucraniana Nina Koshetz (que cantaria o papel de Fata Morgana na estreia das Três laranjas). Por sugestão do violinista Pawel Kochanski, elas foram transcritas para este instrumento – e assim se tornaram conhecidas.
Após nos fazerem transitar pelo intimismo das Canções, Vengerov e Osetinskaya nos transportaram para um Prokófiev completamente diferente. O ano era 1942; regressado à União Soviética, o compositor abrigava-se da invasão nazista em Almá-Atá, no Cazaquistão. Envolvido em dois projetos grandiosos – a trilha sonora do filme Ivan, o Terrível, de Serguei Eisenstein, e a ópera Guerra e paz, inspirada em Tolstói –, ele teve tempo, contudo, de investigar a sonoridade da flauta.
Prokófiev considerava o instrumento “insuficientemente representado na literatura musical”, e conseguiu que o Comitê de Assuntos Artísticos da URSS lhe encomendasse uma obra para ela. Para perplexidade do pianista Sviatoslav Richter, que tocou em sua estreia, em 1943, “os flautistas não tinham muita vontade de tocá-la”. Violinistas do porte de David Oistrakh logo farejaram o interesse que a partitura poderia suscitar, e ela virou uma das pedras de toque do repertório do século XX.
As nuvens da guerra não ensombrecem a obra de Prokófiev, que não ecoa os acentos grandiosos de Ivan ou Guerra e paz, caracterizando-se antes por uma transparência e sarcasmo que remetem a obras da juventude como a Sinfonia Clássica. Vengerov e Osetinskaya interpretaram-na com uma verve contagiante, e deixaram o público com um gosto de “quero mais”.
E teve mais. Quatro bis. Ao virtuosismo transcendente da Marcha do Amor das três laranjas, de Prokófiev, sucederam-se duas delicadas miniaturas de Kreisler (compositor cujo nome o público gritava incessantemente da plateia): Marcha vienense e Schön Rosmarin. O fecho foi a Variação 18 da Rapsódia sobre um Tema de Paganini, de Rachmaninov – que em outras mãos poderia soar kitsch, mas aqui foi de um lirismo singelo e tocante.
Que noite!
![O violinista Maxim Vengerov e a pianista Polina Osetinskaya [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-1194x556%20SISTIC%20Vengerov%20in%20Recital%20re.jpg)
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.