Mayara Magri e Victor Caixeta estrelam produção, como solistas capazes de capturar o coração do público
Ver grandes estrelas do balé em terras brasileiras tem sido cada vez mais raro. Por isso, não é nada trivial a presença de Mayara Magri e Victor Caixeta como protagonistas na temporada de O lago dos cisnes que o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro apresenta até o dia 25 de maio na capital carioca.
Há muitas semelhanças na vida dos dois artistas. Ambos iniciaram na dança por meio de projetos sociais – ela no Rio, ele em Uberlândia, no interior de Minas Gerais – e trilharam carreiras internacionais superlativas.
Ainda adolescente, Mayara se tornou a primeira brasileira a vencer o prestigioso Prix de Lausanne, na Suíça. A conquista a fez se radicar em Londres, em 2011, onde escalou todas as posições do Royal Ballet até alcançar o cobiçado posto de primeira-bailarina em 2021.
Caixeta, por sua vez, foi o primeiro brasileiro contratado como solista pelo centenário Teatro Mariinsky, em 2017. Com o início da Guerra da Ucrânia, ele abandonou o cargo cinco anos depois e se tornou primeiro-bailarino do Ballet Nacional da Holanda. Agora se prepara para estrear na mesma posição, no segundo semestre, no Balé da Ópera de Viena.
Mesmo com trajetórias tão singulares e repletas de feitos inéditos, ainda faltava a eles uma importante “primeira vez”: dançar no Theatro Municipal do Rio, o mais tradicional palco do balé brasileiro. O convite de Hélio Bejani, que dirige a companhia da casa, foi a oportunidade de repatriar esses talentos e fazê-los mostrar o porquê de terem chegado tão longe.
A peça escolhida tem diversos atributos para tal. Com música original de Tchaikovsky (1840-93) e coreografia da dupla Marius Petipa (1818-1910) e Lev Ivanov (1834-1901), O lago dos cisnes é o cavalo de batalha de qualquer companhia clássica. Sua alta complexidade técnico-dramatúrgica exige investimento para uma produção cênica azeitada, um corpo de baile tão afiado quanto numeroso e solistas capazes de capturar o coração do público – missão cumprida por Mayara e Caixeta em sua sessão de estreia, realizada na última quinta-feira, dia 15.
O Lago é altamente exigente para sua protagonista, que dança bastante em três dos quatro atos do balé. São quase três horas entre dois papéis com requisitos muito diferentes. Como Odette – uma princesa transformada em cisne branco após ser enfeitiçada por um bruxo -, seus movimentos precisam balancear força, suavidade e controle. Já sua contraparte Odile – o cisne negro, que se passa por Odette e engana o príncipe Siefgried – requer vigor, agilidade e explosão.
A interpretação de Mayara para o cisne branco se sobressai na expressividade de seus braços, esculpidos para contar a história de maneira eficiente por meio de seu bater de asas. Também salta aos olhos a qualidade do trabalho de pernas, em especial no adágio do segundo ato. O refinamento das linhas de arabesque e a clareza de execução em todas as transições a permitem realizar desacelerações que evidenciam o estado de suspensão do corpo, conferindo mais densidade e dramaticidade aos movimentos.
Mayara desempenha o papel com bravura, mas parece mais confortável na pele do cisne negro. Aqui ela opera justamente em uma chave oposta, reforçando a altivez da personagem a partir de acelerações sutis de movimento e da velocidade de suas piruetas. Essa apropriação a faz superar de forma tranquila pequenos deslizes, como na aguardada série de fouettés, na qual executa 32 giros sucessivos sobre uma perna só. No Municipal, o passo ganha uma dificuldade extra devido à inclinação do palco.
Na maior parte do balé, Mayara contracena com Caixeta, que se demonstra um forte alicerce para a bailarina. Atencioso, ele a conduz com segurança em todos os giros e elevações, permitindo-lhe desenvolver os passos nos tempos pedidos pela ação sem qualquer afobação.
A cumplicidade dos dois chega ao ápice no ato final, quando o príncipe busca se reconciliar com Odette após ter jurado amor eterno a Odile por engano. Antes disso, sua variação do terceiro ato foi responsável por um dos momentos mais memoráveis da noite. Com precisão e elegância, mostrou como a técnica serve à poética, arrebatando o público.
Tal atuação serve de inspiração para o corpo de baile, que apresenta cenas ensaiadas com um sincronismo exemplar, mas por vezes reféns das marcações de tempo e espaço. Em alguns trechos, a releitura coreográfica proposta por Jorge Teixeira e Bejani também reforça esse aspecto, como quando os cisnes se posicionam no palco antes da música de entrada do conjunto, diminuindo o efeito surpresa da “revoada” que vem a seguir.
Pode-se perceber também alguns descompassos da orquestra regida por Javier Logioia Orbe, em especial no diálogo com os protagonistas e na nitidez sonora de alguns naipes – um ponto de melhoria para os próximos espetáculos.
Este não é exatamente um balé masculino, mas a adaptação dá uma atenção a mais aos rapazes, com ênfase no primeiro ato, valorizando as potencialidades de saltos do conjunto.
Um de seus integrantes é Matthews Imperial, o Bufão da noite, que desfiou sequências de intrincados passos suspensos no ar.
Seu personagem foi esquentando ao longo da encenação, mas cabe um aprofundamento maior na mise en scène do terceiro ato para reforçar seu papel de profeta do caos, que percebe e anuncia o erro do príncipe Siegfried, mas não é ouvido por ninguém.
Ainda entre os solistas, Isa Mattos e Marcela Borges trouxeram ótimas interpretações em suas variações do primeiro ato como amigas do príncipe. Vale ainda destacar a performance de Manuela Roçado e Rodrigo Hermesmeyer na dança napolitana do terceiro ato, com uma execução recheada de frescor que manteve o pulso do início ao fim.
Uma força coreográfica dessa versão é o desfecho proposto. Enquanto em muitas montagens o corpo de baile apenas cumpre o papel de moldura, aqui ele assume o protagonismo nos minutos finais, sendo responsável por desfazer o feitiço que aprisiona Odette.
Sim, a opção é pelo final feliz. A contar pelos aplausos ruidosos, feliz também está o público, que parece não se cansar de O lago dos cisnes. Lamentavelmente, parte significativa dele parece preferir gravar as cenas com o celular do propriamente viver a dança. Há um trabalho sério a ser feito pela equipe do teatro para fazer valer a proibição de filmagens amadoras e garantir o respeito aos demais espectadores e à imagem dos artistas. Dada a grandiosidade da ocasião, é também uma pena não haver mais a impressão dos programas de sala como recordação.
Esta é a quinta vez que o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro encena o Lago nos últimos dez anos – e em todas houve briga pelos ingressos. A temporada segue, inteiramente esgotada, com outros bailarinos se alternando nos papéis principais. Se é para revisitar uma mesma obra em tão pouco tempo, que seja assim: com o frescor de artistas verdadeiramente excepcionais, que compartilham sua expertise, estimulam os demais intérpretes e transformam a experiência do espetáculo em algo inesquecível.
![Victor Caixeta, Mayara Magri e Saulo Finelo no segundo ato do balé [Divulgaçã/Daniel Ebendinger]](/sites/default/files/inline-images/w-Victor%20Caixeta%2C%20Mayara%20Magri%20e%20Saulo%20Finelo%20no%20ato%20II%20de%20O%20Lago%20dos%20Cisnes%20BTMRJ%20Foto%20Daniel%20Ebendinger%20%281%29.jpeg)
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