Neurociência da dança, um meio de entender, intervir e cuidar das pessoas

por Redação CONCERTO 17/12/2025

Por Maercio Maia [Maercio Maia é neurocientista e mestre em neurociência e cognição pela Universidade Federal do ABC. Foi bailarino profissional por 15 anos e hoje desenvolve sua pesquisa de doutorado no Departamento de Neurociência e Engenharia Biomédica da Aalto University, na Finlândia.]

Há uma dança que ao ser buscada no cérebro foi encontrada para além dele e que hoje alimenta um campo científico inteiro. Após quase três décadas de neurociência da dança, encontra-se mais do que áreas cerebrais que se ativam dessa ou daquela forma: evidencia-se que a dança não cabe somente em passos e pensamentos; valida-se algumas compreensões acerca da prática profissional da dança e observa-se um interesse crescente sobre uma expressão humana como meio de entender, intervir e cuidar das pessoas. 

Esse texto discute um campo jovem da ciência com o objetivo de não apenas descrevê-lo do ponto de vista de um neurocientista, mas também sob o olhar de alguém que traz, nas marcas e memórias do corpo, a história de uma vida dançada. Propõe-se, assim, apresentar o modo como o autor observa esse território, aproximando-o de quem faz ou se interessa pela dança como linguagem relacional.

Abrem-se as cortinas, desta vez no laboratório
O interesse sobre a dança pela neurociência iniciou com o trabalho de Beatriz Calvo-Merino em 2005, intitulado “Action observation and acquired motor skills: an fMRI study with expert dancers” (“Observação da ação e habilidades motoras adquiridas: um estudo de ressonância magnética funcional com bailarinos experientes”, em tradução livre), que quantificou indiretamente respostas do cérebro durante a observação de movimentos de balé e capoeira feita por bailarinos e capoeiristas. 

Foi a primeira vez que movimentos de dança foram utilizados em um experimento científico tal qual a neurociência pós-década do cérebro propunha: buscar explicar o comportamento e as funções humanas em termos de sua neurobiologia. Beatriz e sua equipe encontraram respostas que impulsionaram o interesse pelo campo e contribuíram para o que se vive hoje como comunidade científica. O trabalho propunha a discussão sobre a maneira como a observação de uma dança específica é modificada pela história de cada indivíduo com essa dança. Em outras palavras, como uma dança observada é moldada por uma dança que foi ou não vivida no passado por quem a observa. Veríamos mais adiante que quando a experiência não está presente, compreende-se o que é dançado e, quando está, ressoa-se a observação de forma factual e em significado.

A imagem apresenta os efeitos da experiência motora prévia nas respostas cerebrais à observação de uma dança. As setas indicam as áreas previstas com ativações significativas. Reprodução do trabalho original disponível em doi:10.1093/cercor/bhi007
Imagem do paper de Calvo-Merino: A imagem apresenta os efeitos da experiência motora prévia nas respostas cerebrais à observação de uma dança. As setas indicam as áreas previstas com ativações significativas. Reprodução do trabalho original disponível em doi:10.1093/cercor/bhi007 (reprodução)

Quando artistas e cientistas se conversam
A aproximação de artistas da dança e a neurociência até aqui se deu de diferentes maneiras. Alguns trabalhos propuseram uma troca no sentido cênico propriamente dito ou ainda na criação ou uso de obras que buscavam um ponto de contato ou troca. Ainda que incipiente, a aproximação de artistas e cientistas é valiosa quando a escuta mútua se faz presente. Do lado da ciência, a reflexão atenta sobre o feedback de bailarinos, por exemplo, pode não só descortinar conclusões dos achados científicos, mas ainda encaminhar outras perguntas sobre o tema de interesse.

Durante o mestrado deste autor no Brasil, ele replicou um trabalho que avaliava respostas indiretas do cérebro durante a observação de movimentos de dança em um vídeo. Dentre a amostra de participantes, estava Mirella Pina, bailarina e terapeuta brasileira que participou pela primeira vez de um estudo do tipo: “Quando você é artista, você não necessariamente pensa que aquilo [a dança ou observação dela] está alterando de alguma forma a sua parte neurológica, a sua parte cerebral. Então, participar de um experimento onde você entende que faz parte de um grupo distinto, que tem esse contato com a arte, e que isso pode gerar alterações nos resultados do estudo, te faz pensar que não é só a sensação que muda, você vê que a dança e a arte não afetam só os sentimentos e o nosso coração, mas afetam o nosso cérebro e fazem ele diferente também”.

O relato de Mirella traz algo necessário para o olhar que a neurociência vem construindo sobre a dança e sobre aquilo que ela chama de um “grupo distinto”. Uma experiência prolongada em uma habilidade artística como a dança coloca os indivíduos em uma distinção quando comparados com pessoas sem essa história marcada no corpo. Mesmo que ainda não seja perfeitamente descrita, tal distinção é propulsora do interesse pelo campo, não apenas para correlacionar os resultados que são quantificados nos estudos, mas para encaminhar ações a partir deles, sejam na própria experiência artística em diferentes domínios ou para além dela.

O trabalho inaugural da neurociência da dança não diz que a ausência de experiência prévia em uma habilidade específica nos impede de incorporá-la à nossa maneira. Aliás, essa é uma das características humanas que nos fazem ser como somos e nos movemos, nossa capacidade de espelhar o comportamento do outro a partir da observação. Ainda assim, observou-se neste trabalho como a atividade de áreas cerebrais relacionadas à memória episódica e semântica se sobressai quando bailarinos observavam movimentos de balé e quando capoeiristas observavam movimentos de capoeira. 

A memória semântica se refere à capacidade de adquirir, armazenar e recordar informações de significado no longo prazo, um significado que aqui não se refere apenas à taxonomia de passos, mas justamente ao conteúdo incorporado da experiência que sim tem um nome, mas que não se encerra nele. Já a memória episódica diz respeito ao mesmo conjunto de memórias de longo prazo, mas desta vez ligadas a eventos vividos, no geral, mas não restrito a pessoas. Tais episódios são armazenados em termos de seu conteúdo factual, mas ainda suas formas e cores, cheiros e sabores, suores e brilhos no olhar.

O uso da dança como estímulo experimental para a neurociência foi valioso para a compreensão de como o sistema de neurônio-espelho é sensível a níveis abstratos da organização de nossas ações. Esses neurônios se referem a uma classe de células cerebrais que se ativam tanto quando realizamos uma ação, quanto quando observamos outra pessoa realizando a mesma ação. Espelhamos ações não apenas a partir do conteúdo cinemático, mas do conteúdo relacional preenchedor dessas ações, pois nenhuma dança pode ser explicada por seus passos isolados, mas pela arte em conectá-los.

A cognição humana incorporada pelo diálogo proposto pela dança
A dança viria a se tornar um ponto importante para os estudos em cognição social, uma área explorada pela neurociência centrada em examinar a maneira como conhecemos o mundo a partir da interação entre pessoas. Viu-se neste trabalho inaugural como o sistema espelho responde às habilidades desenvolvidas, como a dança, não em termos de seus grupos musculares ativadores, mas sob uma rede integrada de informações sensório-motoras e afetivas. Tais discussões foram centrais no desenvolvimento do interesse sobre aquilo que é chamado de neuroestética e as dimensões sociais, afetivas e cognitivas da dança.

Duas grandes revisões acerca da neurociência da dança foram publicadas na comunidade científica até o momento. A primeira foi capitaneada por Andrea Zardi, em 2021, e a segunda por Olivia Foster Vander Elst, em 2023. Algo em comum a elas é o fato de o estímulo dançado ser de interesse em ao menos três esferas das relações humanas: as de aprendizado, expressão e cuidado. A dança é amplamente estudada em intervenções para transtornos do humor como ansiedade e depressão, inclusive com o feito recente de ter sido apontada como uma intervenção coadjuvante superior no tratamento dessa população. Experiências dançadas estão ainda presentes no tratamento de doenças neurodegenerativas com Parkinson e Alzheimer em que se mostram como uma intervenção promissora para a manutenção das capacidades cognitivas. Talvez o pano de fundo das intervenções em saúde mostre o quão importante é o fato da dança ser algo vivido por pessoas em diálogo, pelo movimento. Nossa cognição e afetividade se embaralham no cérebro e talvez a dança seja a cola necessária para essa trama.

Uma dança, embora possa ser dançada sozinha, sempre terá um laço social com quem cria e a faz acontecer. Do lado do aprendizado, não há notícia até aqui de uma dança que se aprenda de forma solitária a vida toda. Mesmo para um solo há pelo menos um alguém que observa e orienta os passos dançados. Além disso, existe a plateia, que não é um bloco passivo de observação, ao contrário, é disparador de afetos a quem se encontra no palco. Parece que há uma sincronia entre plateia e artistas quando uma dança acontece, uma sincronia neural que antes parecia ser uma anedota científica, mas que se tornou evidência no trabalho de Guido Orgs publicado recentemente, no qual ele discorre sobre respostas cerebrais quantificadas em tempo real na plateia e nos bailarinos, mostrando que tal sincronia não só existe, mas pode ser quantificada. “É sempre difícil prever como um campo de pesquisa se desenvolverá, mas os avanços em dispositivos móveis estão facilitando muito a mensuração da atividade cerebral enquanto as pessoas se movimentam. Isso abre muitas novas possibilidades para a pesquisa em neurociência da dança. Na era da IA e das mídias sociais, a dança oferece encontros ao vivo e corporificados entre as pessoas e, dessa forma, se tornará ainda mais importante como prática, mas também como tema e ferramenta de pesquisa”, revela. 

Após quase trinta anos de neurociência da dança, observamos como o interesse pelo uso de intervenções dançadas se torna valioso para a compreensão da cola social que nos faz ser quem somos. Seja para aprender, expressar ou cuidar, a dança é um meio não só possível, mas poderoso de incorporar relações. Sabemos que há muito a ser explorado quando a dança se torna uma ferramenta para a neurociência, ainda assim, podemos nos sentir cada vez mais confortáveis com o fato de essa dança não ser apenas aquela formada por uma série de passos, mas a do lugar entre formas e pessoas que nos mantém em rede, não apenas, mas inclusive, às neurais.

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.