A soprano portuguesa Carla Caramujo se delicia com tapioca e salada de frutas tropicais em um café próximo ao seu hotel, em Copacabana. Estamos na véspera da primeira récita de Orphée, ópera de Philip Glass baseada no filme de Jean Cocteau, produção do Theatro Municipal, na qual faz, pela primeira vez, o principal papel feminino, o da Princesa. O dia de folga precede a estreia dessa primeira montagem da obra na América Latina e a primeira performance de Carla no Rio de Janeiro. Apesar de todas essas novidades, ela transmite calma e tranquilidade.
“Tinha já muito interesse nesse papel, por causa de uma audição há oito anos em que cantei um excerto da Princesa!”, ela conta. “Naquela época, a produção acabou não acontecendo. Agora, estou extasiada com o convite e deslumbrada com o trabalho de Felipe Hirsch e Daniela Thomas, que oferecem camadas e camadas de leituras, criando um efeito hipnótico e muito sensorial.”
O termo “sensorial” seria repetido muitas vezes na conversa sobre Orphée. O libreto replica exatamente o roteiro altamente simbolista do filme de Jean Cocteau, lançado em 1950, o primeiro da trilogia ligada ao escritor-cineasta que Glass montaria: Orphée em 1993, La Belle et la Bête no ano seguinte e Les Enfants Terribles, em 1996. Reconta a história baseada no mito grego em que Orfeu tenta resgatar Eurídice do reino dos mortos. Aqui, a Morte é um personagem, a misteriosa Princesa que, apesar de todo-poderosa, está submetida ao amor e ao julgamento.
Ela, e não Eurídice, é o par de Orfeu, a mover o drama.
Transitamos [nessa ópera] no limiar entre a vida e a morte
“Transitamos [nessa ópera] no limiar entre a vida e a morte”, descreve Carla. “A evolução de Orfeu enquanto artista, a ida ao universo da morte e a volta à vida, a Princesa-Morte que se sacrifica por ele...”. Quando fala sobre a voz, a performance lírica, a imagem é semelhante: “Tocamos o limiar do sublime e da loucura constantemente. Por isso, faço um exercício diário para manter os pés na terra”.
Nascida em Coimbra, Carla se iniciou no violino aos 7 anos de idade. “Não tenho músicos na família, mas todos gostavam imensamente de música. Entrei em contato com a ópera bem mais tarde; tive um impacto avassalador ao ouvir pela primeira vez a Gilda de Edita Gruberova. Foi uma janela que nunca mais se fechou.” A soprano estudou na Guildhall School of Music and Drama de Londres e no Royal Conservatory na Escócia. “Ali descobri que havia algo dentro de mim a ser dominado e que ao mesmo tempo era um ser autônomo. Assim, paradoxal.” Da mesma forma, o binômio controle-entrega se apresenta quando ela adentra o palco, como disse num TED Talks de 2018: “É uma energia especial, metafísica, mas entro em cena atenta a tudo”.
Com uma carreira robusta, principalmente nos palcos da Europa, Carla ama – além do bel canto, claro – a música da primeira metade do século XX e a dos compositores vivos. Ressalta, porém, a consciência de que seus recursos vocais – de soprano lírico-coloratura – casam com o bel canto: “Preciso respeitar minha vocalidade”, analisa. “Mas quero fazer as loucas, Lucia, Ofélia. E a Zerbinetta de Ariadne auf Naxos, a estética perfeccionista e transformadora de Strauss. É um repertório pelo qual anseio, são papeis a conquistar, e quem sabe Lulu, de Alban Berg, daqui a dez anos?”, empolga-se. Das óperas de Mozart, adora Dona Anna e Fiordiligi, e ainda não fez a Susanna das Bodas de Fígaro, “por falta de oportunidade”. “O cânone estético estabelecido por Mozart é uma referência inamovível.”
Do brasileiro João Guilherme Ripper, Carla cantou quatro obras e, desde a primeira vez em que ele a ouviu interpretando a Iara de sua ópera Onheama, em 2014, ficou “muitíssimo impressionado”. “Timbre lindo, atriz maravilhosa”, diz o carioca. “Carla tem uma profunda inteligência musical e espacial, cênica.” Dele, a soprano cantou também a difícil ópera de câmara Domitila, com performances no mosteiro gótico de Alcobaça, no teatro de Castelo Branco e no Festival de Belém, no Brasil, onde cantou ainda os Cinco poemas de Vinícius de Moraes e fez a estreia mundial da cantata Icamiabas. “E é uma pessoa adorável, de grande cultura geral e dedicação”, define Ripper.
Deste Orphée, cuja temporada segue até dia 31 de outubro – sua vinda, aliás, teve apoio do Instituto Camões – , ela comenta o termo “minimalismo” aplicado a Glass: “Há momentos, pelo contrário, próximos da grande ópera, como o dueto com Orfeu após o julgamento. É uma obra extraordinária, uma grande poesia, um embate entre a Morte e o Amor. Sonho e hipnose, ciclo mítico, fábula, filosofia, psicanálise... Saio dos ensaios todo dia inquieta e transformada, tocada pela estética, pela plasticidade, pelo texto”.
A montagem dirigida por Hirsch – com regência da, segundo a cantora, “maravilhosa Priscila Bomfim”, maestrina assistente da Sinfônica do Municipal – tem ambiente branco e preto e os espelhos de passagem entre os mundos; faz referência longínqua à estética anos 1950 do filme de Cocteau. E coloca em cena os bailarinos do Theatro, incluindo alguns dos veteranos. “Meu alter-ego na montagem é a fantástica Aurea Hammerli”, deslumbra-se Carla. “Aqui, estou felicísisma pelo imenso carinho por parte dos funcionários e corpos artísticos do teatro. E destaco uma inspiração, a direção de movimento de Priscila Albuquerque com os bailarinos.” Carla lembra que um dos espetáculos que lhe deram maior prazer na vida foi Un moto di gioia – Mozart Concert Arias, de Anne Teresa De Keersmaeker, com a Companhia Nacional de Bailado portuguesa.
O dia de folga no Rio segue morno. Terminada a tapioca, a dúvida: uma visita ao Corcovado? Ao Pão de Açúcar? Mais tarde, Carla contaria: aproveitou para dormir, na expectativa de uma temporada de récitas em dias consecutivos. A partir dessa sexta, ela nos entrega a poética Morte no sonho de Cocteau-Glass.
[Atualização (28/10): Após a publicação do texto, a soprano Carla Caramujo solicitou que se ressaltasse que o convite para a ópera ‘Orphée’ veio do diretor artístico do Theatro Municipal André Heller-Lopes, com quem já havia trabalhado em Lisboa, e que se sente muito agradecida a ele e ao teatro.]
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