Acervo CONCERTO: O carnaval e os clássicos

por Redação CONCERTO 20/02/2020

Texto de Leonardo Martinelli na Revista CONCERTO de março de 2011

O povo ganha as ruas e praças das cidades. Muitos portam fantasias e adereços (apenas alguns se vestem como cotidianamente). A música soa por toda parte e, não raramente, diferentes sons se sobrepõem. Há cor, riso e alegria no ar, além do odor de bebidas alcoólicas e do suor das pessoas que se aglomeram para celebrar.

A descrição acima se encaixa perfeitamente nos diversos tipos de festas carnavalescas existentes pelo Brasil afora. Mas, se por um lado, como diz o dito popular, o Brasil é a terra do samba, por outro, quase todo o planeta é terra de Carnaval. A cena acima se repete em diferentes pontos do globo, desde as Américas, passando pela Europa, pela Oceania e, mais recentemente, até por algumas tímidas encenações na Ásia. Ao lado do Natal e do Ano-Novo, o Carnaval é uma das grandes celebrações da humanidade, provavelmente insuperável em termos de festa e alegria: em suas diferentes facetas, é definitivamente a celebração que mais energia demanda de seus participantes.

A mais popular das festas brasileiras também marca território na música clássica, já que sua atmosfera inebriante acabou por influenciar diversos compositores do, assim chamado, mundo erudito.

Dica de Escuta Naxos

Mundialmente conhecido como Carnaval – as variantes são pequenas, tais como carnival, em inglês, e carnavale, em italiano –, o termo tem sua origem no latim, carnem levare, que literalmente significa “abstenção da carne”. Em princípio sem conotação metafórico-sexual, o abster-se da carne refere-se ao período de penitências e sacrifícios do cristianismo (em especial, os católicos), por exemplo, a Quaresma, que se inicia na Quarta-Feira de Cinzas e termina na Sexta-Feira da Paixão.

Tradicionalmente, o Carnaval é comemorado na terça-feira que antecede a Quaresma: tendo em vista a sobriedade – espiritual, dietética e etílica – que se instalará durantes esses quarentas dias, a véspera da Quarta-Feira de Cinzas é o dia do “bota-fora”. Durante a Idade Média, a terça-feira que antecipa foi a ocasião na qual toda e qualquer carne presente numa casa deveria ser consumida de uma só vez numa grande festança. Por isso, ela é batizada como Terça-Feira Gorda.

Esse fato é parte da explicação para o caráter orgiástico que o Carnaval tem em alguns lugares. Outra explicação possível diz que o Carnaval tem suas origens na cultura romana da Antiguidade, na qual certas festas populares (como a chegada da primavera, as saturnais e o culto a Apolo) giravam em torno de uma espécie de totem móvel chamado carrus navalis. Tal como ocorreu com o Natal, o Carnaval pode ter sido uma festa pagã assimilada durante os primeiros séculos da era cristã.

Carnaval CONCERTO

Sua possível ascendência na cultura clássica é, inclusive, a explicação de um personagem-símbolo do Carnaval brasileiro: o Rei Momo. Tido como personificação do sarcasmo, na Grécia Antiga, Momos era uma divindade filho de Nyx (Noite), que tinha por hábito fazer gozações de seus colegas olímpicos, dizendo-lhes cruas verdades por meio da sátira. Como figuras assim tendem a ganhar inimigos, Momo foi expulso do Monte Olimpo. Em algumas versões do mito, conta-se que ele chegou a fazer troça do todo-poderoso Zeus.

Apesar do termo Carnaval se referir especificamente à Terça-Feira Gorda, o período carnavalesco muda conforme as diferentes tradições. Se no Brasil comemoramos o Carnaval desde a noite da sexta-feira que antecede a Quaresma (e nos últimos tempos, como na Bahia, já adentrando na própria Quaresma), a festa tem sua extensão máxima, ao menos religiosamente, entre o Natal e a Quaresma.

Seja qual for a origem do Carnaval, uma coisa é certa: seu berço encontra-se sob solo europeu. Sua ligação com o cristianismo fez dele uma celebração que pode ser encontrada em diferentes países, cada qual festejando de um modo que pode ser entendido como reflexo do inconsciente coletivo de sua sociedade. Dentre as diversas festas encontradas no Velho Mundo, as mais globalmente conhecidas são as de Cádiz, na Espanha, de Veneza, na Itália, e de Colônia, na Alemanha – além, é claro, do Carnaval brasileiro.

O Carnaval de Cádiz mantém-se como uma festa de origem popular, na qual agremiações corais fazem a alegria do povo que toma os arredores da Plaza de Mina. Já o famoso Carnaval de Veneza atém-se a suas tradições históricas, com desfiles de mascarados ao estilo do século XVIII, apesar de outros tipos de atrações que a prefeitura promove para segurar o turista na cidade após o sumiço dos elegantes travestidos da Piazza San Marco.

É da cultura italiana que derivaram algumas importantes figuras do Carnaval brasileiro. Pierrô, Colombina e Arlequim constituem o trio que está na base da commedia dell’arte, forma de teatro popular que remete ao século XV e que provavelmente integrava as festividades carnavalescas italianas.

Em Colônia, há um curioso Carnaval cuja abertura oficial ocorre todo dia 11 de novembro (11/11), logo que os relógios marcam 11h11 (imagine a festa que farão neste ano de 2011, em que o número 11 está naturalmente envolto simbolismos). Apesar de o período carnavalesco ter início em novembro, os grandes desfiles são também feito nos dias que antecedem a Quaresma, sendo Rosenmontag (ou Segunda-feira de Rosas) o ponto culminante da festa, realizada dois dias antes da Quarta-Feira de Cinzas.

A origem cristã-europeia é a chave para a compreensão da disseminação do Carnaval mundo afora. Praticamente todo país que esteve sobre a influência de nações católicas desenvolveu, em maior ou menor medida, o hábito de comemorar o Carnaval. Isso explica, por exemplo, o famoso Mardi Grass (ou Terça-Feira Gorda) de New Orleans, cidade norte-americana berço do jazz, que passou por uma forte influência da cultura católica a partir de sua colonização francesa no século XVIII, quando se chamava La Nouvelle-Orléans.

É da França, aliás, que partem as mais consistentes teorias que ajudam a explicar o luxo das fantasias carnavalescas utilizadas mundo afora. Em seu auge, ao longo do século XVIII, o Carnaval de Paris adotara como padrão os elegantes trajes utilizados pela corte de Versalhes. O que então era roupa chique, em pouco tempo se tornaria vestuário estilizado e, num pulo, transfigurado em pura fantasia.

Na América Latina, o Carnaval é uma festa presente em países como Bolívia (com seu colorido Carnaval Oruro), México, Colômbia, Honduras e Trinidad e Tobago, todos com origens nas festividades espanholas.

Com o Brasil não foi diferente e, apesar das múltiplas manifestações do Carnaval ao longo dos tempos e do território nacional, são historicamente claras as origens portuguesas de nossa folia, entre as quais, o entrudo, prática da Corte, no século XVII. Considerada um tanto brutal – pois as pessoas eram alvejadas por bexigas de animais recheadas dos mais diferentes tipos de líquidos –, a tradição do entrudo está presente ainda hoje, na forma dos modernos sprays de espuma, serpentinas e pistolas-d’água, para o deleite dos ousados doidivanas e tristeza de suas vítimas.

O imaginário carnavalesco não passou despercebido pelas práticas musicais que hoje convencionamos chamar de “clássicas”, apesar de ser impossível fazer um mapeamento definitivo de peças eruditas que remetam a essa festa popular. Il Festino nella sera del giovedì grasso avanti cena (ou O festim na tarde da Quinta-Feira Gorda antes da ceia), composto em 1608 por Adriano Banchieri, é um dos exemplos mais longínquos. Nesta divertida comédia madrigalesca, são retratadas cenas e tipos característicos de uma das principais festividades do Carnaval italiano (com direito a palavrões e um impagável contrapunto bestialle). O giovedì grasso é também o tema da ópera cômica (ou farsa) homônima que Gaetano Donizetti estreou em 1829, a partir do libreto de Domenico Gilardoni.

O século XIX foi especialmente pródigo em evocar o Carnaval em sua música orquestral e de câmara. Na estética do Romantismo, em que o imaginário e o idealizado não raro revelavam-se como poderosas forças no processo criativo de seus artistas, o Carnaval ganhou diferentes coloridos pela paleta sonora de seus compositores, desde a visão idílica e íntima do Carnaval op. 9 de Robert Schumann (no qual Pierrot e Arlequim coabitam com os alter egos de Schumann, Florestan e Eusebius), até as livres fantasias de Paganini (Carnaval de Veneza, op. 10, para violino solo), Berlioz (abertura orquestral O Carnaval romano), Dvorák (Abertura Carnaval, op. 92, para orquestra), Sevendsen (Carnaval em Paris, op. 9, para orquestra) e, já adentrando o século XX, Saint-Saëns e seu famoso Carnaval dos animais (no qual o termo é utilizado como sinônimo genérico para festa).

A partir do século XX, as danças populares ligadas às tradições carnavalescas começaram a aparecer também na obra de compositores clássicos brasileiros, num primeiro instante embebidos em ímpetos nacionalistas e, mais recentemente, na ascensão da cultura crossover e na busca de um hibridismo musical entre o erudito e o popular.

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.