César Franck em leitura intensa e sensível

Se o domingo foi mais ensolarado do que os que até então vinham ocorrendo na capital paulistana, deveu-se em boa medida ao luminoso concerto do duo formado por Natan Amaral e Erika Ribeiro na Fundação Maria Luisa e Oscar Americano

Graças aos projetos sociais, a música clássica brasileira está descobrindo algo que a música popular sabe desde sempre: nossa arte só é realmente grande quando inclusiva. E, inversamente, a grandeza da arte inclusiva brasileira aponta para o tamanho que nossa sociedade poderia atingir se praticasse a inclusão em todos os campos.

Claro que o fulgurante sucesso internacional do violinista Natan Amaral deve-se muito a seu exuberante talento, musicalidade e carisma. Mas ele também indica que poderíamos ter milhares de Natans nas demais áreas de atividade se nossa sociedade se dirigisse para os jovens excluídos não com uma arma apontada para suas cabeças, e sim com oportunidades educacionais e profissionais.

Egresso de um projeto social do Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, Amaral, aos 30 anos, não é apenas uma história de superação. É um virtuose de seu instrumento, cujo talento impressiona e encanta mesmo quem desconhece sua trajetória pessoal, e se atém apenas à qualidade de seu fazer musical.

No último domingo, dia 17, ele se apresentou na caprichada série da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, em São Paulo, com uma parceira bastante especial – a pianista Érika Ribeiro, que foi sua professora de música de câmara na UNIRIO.

O programa começou com a Sonata em mi bemol maior, K. 378, de Mozart. O compositor austríaco tinha por volta de 24 anos na época e, como o pianista Eduardo Monteiro, curador da série, notou em sua fala de abertura, essa já pode ser considerada uma peça de sua maturidade – afinal, ele só viveu até os 35 anos.

Trata-se de uma partitura escrita entre a volta de Mozart de Paris, em 1779, e sua partida definitiva de Salzburgo para Viena, em 1781. É a fase da Missa da Coroação, das sinfonias nº 32 e nº 33 e da Serenata Posthorn. A elegância da obra foi colocada em relevo pelo pianismo transparente e cristalino de Ribeiro, uma de nossas melhores intérpretes do século XVIII, e pelo bom gosto de Amaral, com um uso parcimonioso do vibrato. Seu senso de estilo só aguçou meu apetite pelo disco já gravado, mas ainda não lançado pela multinacional Decca (sim, o selo pelo qual gravava Nelson Freire) com concertos para violino do “Mozart negro”, Joseph Boulogne, Chevalier de Saint-George (1745-1799).

Em seguida, vieram os Três romances Op. 22, de Clara Schumann – que Maxim Vengerov tocou no Brasil recentemente, em seu recital com Polina Osetinskaya. A coincidência aponta para um bem-vindo sintoma: o resgate da produção de mulheres compositoras. Ribeiro mostrou-se bastante consciente das particularidades da escrita para teclado de uma das maiores pianistas de todos os tempos, e ressaltou, em sua fala, que a obra foi composta para um grande violinista da época – Joseph Joachim. Natan brincou que aquilo colocava pressão em seus ombros, e brindou-nos com uma visão bastante lírica das peças, executadas com sensibilidade.

Tudo muito bonito. Mas devo confessar que se coloquei o despertador para tocar numa manhã de domingo e encarei uma longa viagem até o Morumbi foi porque o programa incluía um monumento: a Sonata de César Franck.

Ela também foi composta para outro virtuose histórico do violino – presente de casamento de Franck a Eugène Ysaÿe. A estreia pública, em 1886, parece já captar o espírito da sonata. Ysaÿe e o pianista Bordes-Pène tocaram no Museu de Pintura Moderna, de Bruxelas, em um entardecer, sem iluminação artificial. A luz natural foi se extinguindo, a ponto de os executantes terem que tocar de cor – não dava para ver a partitura. Quando a performance terminou, músicos e plateia estavam envoltos na escuridão. Nada mais sugestivo.

Não parece exagero dizer que Amaral faz o que quer com o violino – mas talvez o mais espantoso seja o quão bem orientado é o seu querer

Para fãs de outro monumento, o ciclo Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, a peça de Franck é a que melhor traduz o espírito da sonata para violino e piano do compositor ficcional Vinteuil, que serve como tema musical do amor de Swann e Odette. Pouco importa que o próprio Proust tenha, em carta, atribuído sua inspiração a uma sonata de Saint-Saëns – ou que pesquisadores indiquem para obras de Reynaldo Hahn (amante de Proust), Guillaume Lekeu ou Gabriel Pierné: pela sensualidade das harmonias e pelo engenhoso jogo mnemônico, a partitura de Franck parece encapsular a poética proustiana.

Afinal, a sonata de Franck é em forma cíclica. Ou seja, seus quatro movimentos compartilham de material musical: temas que são originalmente de um reaparecem nos outros. Além de conferir unidade à obra, isso também cria uma acumulação de lembranças e referências, que confere novos significados aos temas em cada uma de suas recorrências. Um procedimento que pode ser considerado análogo ao de Proust, cujos sete volumes do Tempo perdido compartilham não apenas de personagens, como temáticas – e a lembrança ou o retorno deles acionam gatilhos afetivos e emocionais. Vários temas da sonata de Franck podem se candidatar não apenas a serem a frase da sonata de Vinteuil que tanto tocava o coração de Swann, como ainda às celebres madalenas que se celebrizaram por desencadearem mecanismos de memória involuntária na poética proustiana.
Para além disso, trata-se de uma obra de incrível dificuldade técnica para os executantes, mobilizando uma multiplicidade de afetos que vão do lúdico ao meditativo, do plácido ao arrebatado.

Não parece exagero dizer que Amaral faz o que quer com o violino – mas talvez o mais espantoso seja o quão bem orientado é o seu querer. Ele comanda uma vasta gama de dinâmica e tem uma sonoridade cálida em todos os pontos do arco, que lhe permitem uma vasta exploração da riqueza anímica do mundo de Franck. Érika revelou-se uma parceira atenta e sensível, buscando responder à intensidade do violinista. Confesso que invejei o educado público da fundação, que prorrompeu em aplausos ao final do segundo movimento, um Allegro cheio de brio. O momento não pedia outra coisa.

Se o domingo, dia 17, foi mais ensolarado do que os que até então vinham ocorrendo na capital paulistana, deveu-se em boa medida ao luminoso concerto desse duo. Mês que vem, Érika Ribeiro sola com a refinada Filarmônica de Minas Gerais, na capital mineira. Resta torcer para que nossas orquestras agora descubram o talento de Natan Amaral, e o chamem para tocar por aqui. Será imperdível.

Natan Amaral e Erika Ribeiro [Divulgação]
Natan Amaral e Erika Ribeiro [Divulgação]

 

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