Obra de Verdi encenada no Theatro São Pedro é um espetáculo que deve ficar na memória do público por um bom tempo. Uma lição de teatro, de música. De ópera
O sr. Fontana procura Falstaff com um pedido inusitado. Está apaixonado por Alice Ford, uma mulher virtuosa, que não lhe dá a menor bola. E quer que o velho Sir, com seus poderes de sedução, a conquiste. Afinal, de um erro pode nascer outro erro. Se ela trair o marido com Falstaff, por que não faria o mesmo com ele?
Mas o sr. Fontana é na verdade Ford, o marido de Alice. Disfarçado, tem em mente uma armadilha dupla para descobrir se Falstaff pretendia mesmo conquistar sua mulher, como fora alertado, e, de quebra, testar a fidelidade de Alice.
O que Ford não esperava, porém, era ouvir que Falstaff já tinha um encontro marcado com Alice. A brincadeira imediatamente perde a graça. É sonho ou realidade?, ele se pergunta. E responde a si mesmo: “A hora está marcada, o engano tramado. Você foi enganado e traído!”
A cena se passa no segundo ato da ópera. Vai do hilário jogo de palavras e música que retrata a conversa improvável entre Falstaff e Ford ao tom introspectivo com que o marido perde o controle da situação e se descobre traído. E a maneira como o maestro Ira Levin constrói essa transição, ressaltando a transformação no caráter da ação, é perfeito exemplo da sofisticação da leitura que a obra de Verdi recebeu de suas mãos e da Orquestra do Theatro São Pedro na montagem atualmente em cartaz na casa paulistana. Assim como o é a maneira com que, após a ária de Ford, ele traz de volta o teatro, num pulo, para o ambiente do riso.
Falstaff, última ópera do compositor, é a síntese da tradição da ópera cônica italiana. Mas também do teatro verdiano, da humanidade com que o compositor sempre tratou seus personagens, fazendo da condição humana seu grande tema. No âmbito da comédia, esse caminho se dá de forma ainda hoje impressionante. Escrita para grande orquestra, a partitura se divide em pequenos pedaços camerísticos, temas repletos de humor, ou de beleza incomparável, mas sempre breves, em uma sucessão de ideias musicais que não apenas dá ritmo teatral à ação. Forma e conteúdo são aqui indissociáveis. Verdi brinca com nossas expectativas de ouvintes. Une o lírico, o grotesco, o riso, o ciúmes, a ganância, a paixão, mas não favorece nenhum desses aspectos em detrimento dos outros. A vida, afinal, está na vertigem das transformações. E se ele nos diz, no final, que tudo no mundo é uma burla, não o faz para diminuir a experiência humana, mas, pelo contrário, torná-la ainda mais única e especial, com as artimanhas em enganações que aplicamos aos outros (e a nós mesmos) vistas com generosidade.
O desafio, do ponto de vista musical, é estar atento a esse jogo, dar verdade a cada momento sem perder de vista o todo; ressaltar a transformação dos temas, em uma tapeçaria de significados que nunca aliena quem ouve. E Levin faz isso dando espaço à música, aos cantores, respirando com o texto. Com a leveza e a fluência teatral que apenas um conhecimento profundo da partitura pode permitir.
E a concepção cênica e a direção de Caetano Vilela são igualmente brilhantes.
O libreto adaptado por Arrigo Boito das peças Henrique IV e As alegres comadres de Windsor, de Shakespeare, se passa primordialmente em dois ambientes: a taverna onde vive seus dias e noites o falido Falstaff e a rica casa da família de Ford. Há, na origem, uma oposição entre os dois ambientes, mas Vilela a quebra e, por meio dos cenários de Duda Arruk, aproxima os dois universos – assim como Verdi aproxima todos os personagens por meio de seu olhar para a humanidade (nesse sentido é também interessante a construção do terceiro ambiente, a floresta do último ato, despida de elementos, a ressaltar que o cenário, ali, está acima de tudo no mundo interior dos personagens).
Não vemos de fato a casa de Ford, mas uma família de mudança. Há um que de decadência no ar. A casa está mais próxima da taverna. E a taverna em si é um achado. Vilela a chama de Bayreuth-Funda. Brinca com o nome do bairro em que está o São Pedro. O jogo entre o erudito e o popular, o mítico e a rua, está nos grafites de Luis Bueno, da série Pelé Beijoqueiro. E colocar uma Valquíria (a divertida Lyv Ziese) como atendente é simplesmente delicioso – Verdi foi acusado de wagnerianismo ao escrever Falstaff, não custa lembrar; e há algo também de quebra de expectativas ao colocar a heroína mítica do Anel do Nibelungo servindo naquele ambiente. Brünhilde, quem diria, acabou no Irajá. Quem nunca?
![Cena do primeiro ato de 'Falstaff' [Divulgação/Íris Zanetti]](/sites/default/files/inline-images/w-2025-08-15-TSP-falstaff-fotos-%C3%ADris-zanetti-024.jpg)
![Rodrigo Esteves como Falstaff [Divulgação/Íris Zanetti]](/sites/default/files/inline-images/w-2025-08-15-TSP-falstaff-fotos-%C3%ADris-zanetti-104.jpg)
Mas é também no artesanato do trabalho com o elenco que Vilela demonstra sua compreensão da ópera. Não há histrionismo, não há exagero. A caracterização de Falstaff relembra que patético não é o mesmo que ridículo – e o barítono Rodrigo Esteves ofereceu do personagem interpretação capaz de definir uma carreira, uma construção cênica e vocal que comove e faz rir de maneira orgânica, sem precisar recorrer à caricatura. O trio Pistola (Felipe Oliveira), Bardolfo (Geilson Santos) e Dr. Caius (Vitorio Scarpi) foi notável também pela recusa do óbvio e do exagero nos recursos vocais e cênicos. Igor Vieira foi um Ford notável.
No elenco masculino, apenas um reparo: o Fenton do tenor argentino Santiago Martinez tem menos nuances do que a escrita de Verdi pede, em especial no arioso Dal labbro il canto estasiato vola. Isso torna ainda mais evidente o contraste com a Nanetta da soprano Maria Carla Pino: a construção envolvente de Sul fil d'un soffio etesio, com uma voz tão à vontade e delicada nos registros agudos, deu dimensão especial à personagem. Gabriella Pace parece de fato muito à vontade nos papeis mais pesados que tem enfrentado nos últimos anos e, assim como sua Alice, a Meg de Juliana Taino e a Quickly de Ana Lucia Benedetti (perfeita nas interações com Falstaff) são resultado de uma maturidade vocal colocada a serviço do texto e da música, e nunca o contrário.
Falstaff, não é exagero dizer, é um espetáculo que deve ficar na memória do público por um bom tempo. Uma lição de teatro, de música. Desse negócio tão especial que pode ser a ópera.
[Falstaff segue em cartaz no Theatro São Pedro até o dia 24 de agosto; veja mais detalhes no Roteiro Musical.]
![Gabriella Pacce, Maria Carla Pino, Juliana Taino e Ana Lucia Benedetti [Divulgação/Íris Zanetti]](/sites/default/files/inline-images/w-2025-08-15-TSP-falstaff-fotos-%C3%ADris-zanetti-033.jpg)
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