Por Ricardo Severo*
O Palácio das Artes, neste final de 2021 em Belo Horizonte, foi palco de uma experiência inédita do Brasil. Cinco óperas curtas originais trouxeram musicalidades e sotaques até então pouco vistos no universo lírico nacional. Com textos de libretistas iniciantes, incluindo este que vos escreve esta apreciação, aliados a cinco compositores brasileiros contemporâneos, estreou no último dia 21 o espetáculo Viramundo, uma ópera contemporânea.
O trabalho é resultado do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, desenvolvido neste semestre dentro da programação da Academia de Ópera 2021 da Fundação Clóvis Salgado. Com a curadoria da diretora cênica Lívia Sabag e do maestro Gabriel Rhein-Schirato, o ateliê teve inúmeras atividade formativas, mesas de debate e palestras, acompanhadas online por profissionais interessados.
Em uma delas, cinco participantes foram selecionados para criarem libretos tendo como inspiração o romance O grande mentecapto, do escritor mineiro Fernando Sabino, lançado em 1979. Nele, o personagem Geraldo Viramundo aventura-se por muitos cenários de Minas Gerais, em várias fases de sua vida, metendo-se em confusões por onde passa. Viramundo já foi descrito algumas vezes como um Dom Quixote brasileiro.
Cada uma das óperas apresentadas explorou o romance de uma forma diferente. Sim, porque com a quantidade de situações e personagens que o escritor coloca ao redor de seu protagonista, descritas quase como se fossem pequenas crônicas, os autores puderam extrair cenas instigantes para cada uma de suas histórias. E a combinação disso com compositores de escolas tão diversas entre si resultou em uma miríade de sensações aos espectadores.
Na primeira ópera, Os Circunvagantes, o autor Luiz Eduardo Frin cria um trio de palhaços que, resgatando a tradição brasileira do circo-teatro, tenta encenar a sua versão do Mentecapto. Com um viés crítico e tragicômico, a história se intensifica com a música de Maurício de Bonis que, ao invés de separar as vozes dos cantores, utiliza três tenores para manter a graça dos personagens sempre presente, saindo do tonalismo em sua orquestração com muitos metais e percussão, e trazendo uma pitoresca sonoridade de banda marcial, típica dos circos.
Na sequência, em Não gosto de corpo acostumado, o autor Djalma Thürler traz uma grande apresentação do personagem Viramundo cantada pelo próprio, intercalada pela presença marcante de um coro, explorado com a delicada poética musical da compositora Denise Garcia. Em seguida, As três mortes de Geraldo Viramundo traz uma revisão das ações futuras do protagonista Viramundo a partir de uma cena icônica de sua infância, que é quando ele tenta parar um trem. A partir dessa estrutura narrativa, o compositor André Mehmari se aproveita do libreto versificado para construir uma composição tonal muito envolvente, e que dá espaço ao tenor Giovanni Tristacci para emocionar em sua ária inicial.
Logo depois, vem Viramundo, Viraflor, de autoria de Jullianno Mendes, que traz o velório de Viramundo, onde os demais personagens do romance cantam sobre seus encontros com o protagonista, as consequências de seus atos, finalizando com um renascimento do defunto, na verdade uma reapresentação do próprio. A música de Antonio Ribeiro se apresenta como um oratório profano, explorando a ironia da cena, que inicia fúnebre e se transforma em ressurreição.
Finalmente, em O julgamento, a autora Bruna Tameirão coloca o personagem principal do romance de Sabino em uma situação onírica (constatada pela introdução com uma personagem chamada Rêverie), onde Viramundo é julgado em uma corte por todos que cruzaram pelo seu caminho. Rêverie é um termo usado na psicanálise para exprimir o conceito do devaneio, usado como forma de resolver os conflitos de um paciente. A compositora Thais Montanari acompanha esse estado de sonho da cena com uma musicalidade rica e climática.
Como cada uma dessas óperas curtas não tem relação direta, a não ser a inspiração a partir da obra de Sabino, seria fácil o espetáculo se tornar dispersivo. Mas a ordenação delas acaba funcionando como uma meta-história amarrando diversos momentos do personagem Viramundo: a contação iniciada pelo trio de palhaços; a apresentação do personagem; seu começo de vida e sua morte; seu velório; e, por fim, seu julgamento em um purgatório.
As malas presentes em todas as óperas, colocadas pela diretora Rita Clemente, surgem como uma condução imagética que reproduz metaforicamente a vida errante do protagonista. Todos esses aspectos reforçam a diversidade exuberante de poéticas literárias e musicais na apresentação dessas cinco obras em um espetáculo marcante e provocador. Mas se já não bastasse a fabulosa iniciativa de trazer à baila um aspecto pouco explorado nas óperas, que é a criação dramatúrgica de um libreto, levar esses novos textos a compositores e encená-los talvez seja o grande trunfo do trabalho.
Precisávamos de novas formas de contar histórias, e os libretistas que surgiram nesse Ateliê fizeram isso. No entanto, produzir esses trabalhos leva a um retorno necessário para os artistas seguirem criando mais e melhor. Nos tempos atuais, os produtores do mercado cultural sabem que o investimento num grande espetáculo não é barato nem simples. E por isso, acham que apenas obras consagradas terão êxito e consequente retorno. Mas é preciso separar o que é entretenimento e o que é arte na hora de investir.
Produzir uma ópera de qualidade não significa reproduzir obras que já estão no cancioneiro lírico há muito tempo. E Viramundo, uma ópera contemporânea mostra isso. É preciso que haja uma continuidade desse tipo de incentivo, na criação de novas obras, a partir de novas dramaturgias de texto e música, para que muitas novas óperas brasileiras sejam produzidas, e essa arte possa evoluir.
* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio
![Cena de "Viramundo, uma ópera contemporânea" [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/Viramundo_Severo.jpg)
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