Uma ópera como um povo: a unidade que vem das diferenças

por Redação CONCERTO 30/12/2021

Por Luiz Eduardo Frin*

Na noite de 21 de dezembro de 2021, cinco pequenas óperas foram apresentadas pela primeira vez ao público e compuseram o espetáculo Viramundo: uma ópera Contemporânea, com direção cênica de Rita Clemente e regência de Gabriel Rhein-Schirato, no Palácio das Artes na cidade de Belo Horizonte. Os libretos das pequenas obras operísticas resultaram dos trabalhos do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos, uma atividade da Academia de Ópera da Fundação Clóvis Salgado, em Minas Gerais, realizada no segundo semestre deste ano.

O Ateliê centrou-se na produção de libretos para abrir espaço para discussões e reflexões sobre o fazer operístico na atualidade. Nele, 16 participantes ativos e 26 ouvintes, selecionados dentre 105 interessados de todo o país, reuniram-se online com profissionais de diversos setores da produção de óperas do Brasil e do mundo.

Dentre todos os participantes, cinco foram escolhidos para escrever os libretos. O processo de escrita, conduzido pelo poeta e escritor Geraldo Carneiro, foi aberto. Durante os encontros com Carneiro, no qual os libretistas apresentavam o andamento de seus trabalhos, todos os que participavam das atividades do Ateliê eram convidados a apresentar suas impressões sobre o que estava sendo desenvolvido.

Cada libretista trabalhou com um compositor escolhido previamente pela curadoria do Ateliê, exercida pela diretora cênica Livia Sabag e pelo maestro Gabriel Rhein-Schirato. Assim, as duplas entre libretistas e compositores foram as seguintes. Luiz Eduardo Frin, autor deste texto, e Maurício de Bonis, Ricardo Severo e André Mehmari, Djalma Thürler e Denise Garcia, Juliano Mendes e Antonio Ribeiro, Bruna Tameirão e Thais Montanari. Mesmo com formações e trajetórias artísticas diferenciadas, os compositores e compositoras selecionados pela curadoria transitam dentro da perspectiva estética da chamada música contemporânea.

A partir de fins de século XIX, em processo que se acentuou e se consolidou no século XX e chega até os nossos dias, a criação musical ocidental rompeu parâmetros que se desenvolveram por séculos e que garantiam o resultado considerado harmonioso da composição. O afastamento do que era considerado harmonioso nunca chegou a ser uma unanimidade, ou caiu totalmente no apreço dos ouvintes. Há muitos estudiosos que apontam, inclusive, que nas mais variadas artes, a ruptura com os preceitos estabelecidos tradicionalmente acarretou também a ruptura com o público. 

Como escrito, todos os compositores das cinco pequenas óperas que formaram o espetáculo Viramundo, cada um à sua maneira, transitaram por esse terreno de rupturas. Mas, em minha percepção, em concordância com a do crítico Irineu Franco Perpetuo, o espetáculo Viramundo estabeleceu uma grande comunhão com o público presente no Palácio das Artes em sua, até agora, única apresentação.

Vários elementos podem ser apontados como catalizadores de tal comunhão, mas gostaria de ressaltar qual, para mim, está na base de todos eles: o que estava sendo visto e ouvido em cena dizia respeito às pessoas que estavam na plateia. Em forma e conteúdo que, como nos ensinou Hegel (1770-1831), são interdependentes quando a coisa funciona a contento em termos de arte.

Tudo que saía das bocas dos cantores e cantoras estava em português claro, na maioria das vezes coloquial, e em algumas vezes em expressões regionais de Minas Gerais. Inspiradas no romance O grande mentecapto (1979), do mineiro Fernando Sabino, as cinco obras conduziam o público ao circo, à boate, à missa, ao banho no rio, ao passeio na mata, à viagem no trem, ao julgamento com traços de absurdidade, às alegrias, ao gozo, e às dores, aos infortúnios que acompanham os brasileiros de todas as Minas Gerais e de todos os tempos. Escritos em processo no qual se destacou a colaboração, os libretos traziam a visão particular de cada um de seus escritores, assim como um pouquinho de cada participante do Ateliê de Criação e, por consequência, um pouquinho de cada um ou uma do público.

Além de cantores e cantoras, compunham a cena bailarinos e bailarinas que em movimentos estilizados ajudavam a compor uma cena que, assim como a música, era familiar e estranha a todos os presentes no Palácio das Artes naquela noite.
Darcy Ribeiro (1922-1997), no livro O povo brasileiro (1995), defende a tese segundo a qual nosso povo foi formado muito mais por negações do que por afirmações. A questão da miscigenação é clara e evidente, mas, para Ribeiro, o brasileiro se afirmou negando e sendo negado – negando o autóctone, negando o negro africano e sendo negado pelo português.

Um pouco assim é o personagem Geraldo, de um nome e inúmeros sobrenomes, composto por Fernando Sabino. Personagem que transita no limiar da razão e da loucura – cidadão e estrangeiro em todos os lugares pelos quais passa. Assim foi a música e a cena de Viramundo. As referências à cultura cênica e musical estrangeira estavam todas lá: na música contemporânea, na composição de um todo formado por fragmentos díspares, no corpo simbólico e fraturado pela movimentação de cada bailarino e bailarina. Entretanto, todos e todas, na orquestra, em cena ou na plateia atuavam reconhecendo e estranhando tudo que estava em sua frente.

Assim, Viramundo: uma ópera contemporânea reafirmou em todos nós a condição de brasileiros.

* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio

Cena de "Viramundo, uma ópera contemporânea" [Divulgação]
Cena de "Viramundo, uma ópera contemporânea" [Divulgação]

 

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