Viramundo e a revolução na ópera: um relato

por Redação CONCERTO 30/12/2021

Por Mariana Oliveira*

Ao me inscrever no Ateliê de Criação da Academia de Ópera do Palácio das Artes, não fazia ideia da revolução da qual estava prestes a participar. Mesmo como aluna maravilhada em participar de conversas que, até aquele momento, pareciam tão distantes, confesso que a noite de 21 de dezembro de 2021, estreia de Viramundo, uma ópera contemporânea, sequer havia passado pela minha imaginação.

No Ateliê, acompanhei aulas interessantíssimas com discussões importantes entre colegas que vinham de áreas variadas, incluindo tanto pessoas já há muito inseridas no mundo da ópera quanto aqueles que nunca haviam tido contato com o gênero, apesar da curiosidade. Isso sem contar as aulas com nomes gigantes como Peter Sellars e as orientações do imortal Geraldo Carneiro.

Algo de novo estava acontecendo ali. Que a pandemia e a nova rotina a que fomos obrigados a nos acostumar desde março de 2020 nos fizeram questionar visões de mundo e rever modos de fazer, não há dúvidas. E questionamentos e revisões estavam mais do que presentes nas discussões sobre ópera que aconteciam naquelas reuniões online, com muito envolvimento e vontade de contribuir e transformar.

As aulas aconteceram entre agosto e novembro, pouco tempo para tudo o que foi absorvido ali. Enquanto cinco participantes eram escolhidos e reunidos a cinco compositores para a criação de pequenas óperas inspiradas no livro O grande mentecapto, de Fernando Sabino, aconteciam conversas sobre o que é ópera, qual o seu papel e relevância no mundo de hoje, como fazê-la conversar com e incluir todo tipo de gente, como inovar e surpreender, e muito mais. 

Como cantora, foi um privilégio acompanhar tudo isso ao lado de profissionais envolvidos em atividades variadas. Desde os idealizadores, o maestro Gabriel Rhein-Schiratto e a diretora cênica Livia Sabag, passando por atores, diretores de teatro, professores, compositores, cantores e muitos outros, parecia haver ali um time dedicado a fortalecer a ópera brasileira, principalmente em um momento em que as perspectivas para a arte no país não se mostravam as melhores. 

Todas essas ideias e questionamentos foram levados em conta na criação dos libretos por cinco pessoas com perspectivas únicas, que receberam a música de compositores brasileiros contemporâneos, cada um com seu estilo e identidade próprias. Lemos e conversamos sobre cada um dos textos durante as aulas, com a incrível vantagem de ouvir de seus autores o que eles quiseram passar. 

Quando me vi fazendo parte também da montagem dessas óperas, que estreariam em uma grande apresentação no palco do Palácio das Artes, em dezembro, tudo isso passou na minha cabeça. Receber partituras para estudar foi além do estudo de sempre: é claro que me preocupei em trazer para a prática o que ouvi (e também falei) nesses quatro meses, apesar de sentir que ainda há muita coisa a ser processada.

Óperas não apenas contemporâneas, mas brasileiras, estavam surgindo, e a força disso já se mostrava maior do que imaginávamos no início de tudo. É um processo em andamento: mesmo quando chegamos ao palco, era claro que o caminho estava apenas começando.
A prática mostrou-se um outro campo, também passando por aprendizados e testes. Para começar, ensaiaríamos em meio a uma pandemia, o que exigiria cuidados específicos e adaptações, como inserir intervalos para que o espaço pudesse ser limpo ou realizar testes de COVID-19 periodicamente. 

A própria atividade do canto neste período foi bastante afetada, e não “apenas” pelo fechamento de teatros e salas de concerto. Passamos quase dois anos cantando em cômodos pequenos dentro de casa (quando isso era possível), um quase hábito que precisaria rapidamente ser transformado. 

Voltar a cantar em uma grande casa de espetáculos como o Palácio das Artes foi de fato desafiador nesta produção. Incluiu não apenas retomar a resistência física e a prática de cantar por longos períodos de tempo, fazendo isso em um espaço grande e com uma acústica um pouco desafiadora, como trabalhar a forma como esse canto se encaixaria nesse repertório específico: cinco composições brasileiras com características muito próprias.

O desafio de pensar sobre como colocar a voz neste trabalho, abrindo caminho para as novas visões trazidas durante o Ateliê e respeitando a identidade e a cultura representadas nas cinco óperas através da história do icônico Geraldo Viramundo, foi grande e enriquecedor. Exigiu encontrar um equilíbrio entre a inovação, a representação e a bagagem que cada cantor já trazia, imprescindível principalmente em questões técnicas: como se fazer ouvir e ser entendido cantando em português num grande teatro?

Além disso, estávamos montando um espetáculo muito representativo, de forma inédita. Baseado em um clássico da literatura mineira, com diversos aspectos próprios (incluindo o sotaque e expressões típicas), Viramundo, uma ópera contemporânea estava proporcionando também uma montagem em que interpretaríamos personagens muito mais próximos da nossa realidade. Isso também trouxe a necessidade de um olhar equilibrado, que pudesse conciliar a leitura dos autores – libretistas e compositores – dos temas representados com os aspectos específicos do gênero ópera.

A ópera “tradicional” tem sim muitos personagens que funcionam como um espelho para o público, representando aspectos diversos da humanidade. Não à toa está aí há séculos nos palcos, emocionando, atraindo públicos diversos. Mas é preciso observar que, em pleno século XXI, momento em que as coisas se transformam num ritmo muito mais acelerado do que damos conta de absorver, um personagem como Geraldo Viramundo (aquele que, incompreendido, provoca risos tanto quanto apanha) surge como uma revolução. 
Em cada um dos cinco libretos era possível encontrar, de forma escancarada, os diversos Viramundos, Peidolinas, Barbecas, Pingolinhas e Batatinhas da atualidade, alguns deles novatos no universo da ópera simplesmente por saírem da realidade brasileira, uma realidade que está apenas começando a ser representada pelo gênero. 

A récita do dia 21 de dezembro de 2021 foi apenas um começo. Muitas experimentações, testes, incertezas e até inseguranças estiveram presentes ali. Mas, certamente, abriu uma grande porta. E veremos ainda maiores e mais fortes Viramundos nos palcos do país.

* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio

Cena de 'Viramundo, uma ópera contemporânea' [Divulgação]
Cena de 'Viramundo, uma ópera contemporânea' [Divulgação]

 

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