Por Filipe Gaspar*
No passado 9 de outubro, o poeta, dramaturgo, roteirista e letrista mineiro Geraldo Carneiro concedeu entrevista conduzida pelo jornalista musical João Luiz Sampaio. Esta decorreu no âmbito da Academia de Ópera 2021 do Palácio das Artes – Fundação Clóvis Salgado, em que ambos participam como orientadores residentes.
Não é fácil resumir uma conversa com alguém cujo mister é precisamente esculpir ideias através de palavras. Geraldo Carneiro é uma dessas pessoas que nos embalam com seu uso da língua. Sim, ele é um poeta consciente da “melopeia” – a sonoridade própria ao discurso – imanente de cada fonema e de cada conjugação entre vocábulos. Seu “papo” informal não é menos cativante, pelo menos para alguém que, como eu, fala com o sotaque da velha Europa. Carneiro é eclético até nos registos de língua, passeando despudorada e convictamente entre a gíria e o literário.
Seu pacto é, afinal, com a liberdade e a diversidade criativas, princípio que, mais do que “impor”, tem “exercido” no seu trabalho com a turma da Academia de Ópera. O tema deste ano é “Dramaturgia e Processos Criativos”. O papel de Geraldo Carneiro tem sido partilhar sua experiência no espetáculo músico-teatral, ajudando a criar o ambiente para que as “vozes” dos cinco autores selecionados entre o grupo de formandos se exprimam na construção de libretos para cinco óperas de câmara que estrearão no tablado do Palácio das Artes no final deste ano. Estas se basearão em O grande mentecapto (1979), do mineiro Fernando Sabino (1923-2004), sem que haja, segundo Geraldo, “um esforço de pasteurizá-las e transformá-las numa mesma versão”, tampouco em mera reprodução do romance.
Resistir à canonização das formas – o que não pode ser confundido com “desrespeito” – parece ser o corolário da sua biografia. Na meninice, leu Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Augusto dos Anjos (1884-1914) ou João da Cruz e Sousa (1861-1898), “com uma espécie de senso iconoclasta” e, ao mesmo tempo, “um certo senso parricida, um desejo de que aquilo não se tornasse tão terrivelmente canônico”, explica. O fascínio precoce pelas letras não seria diminuído pelo período adolescente em que ainda cogitou tornar-se músico. Acabaria “docemente exilado na república das letras” por amigos músicos que, reconhecendo seu talento, o levaram a engrenar na carreira de letrista.
Ao descrever seu métier, fica claro quanto as relações pessoais são importantes para o processo. Com Egberto Gismonti, tem procurado “inventar uma história que se entrose de tal maneira com a melodia, que o ouvinte suponha que aquelas coisas tenham sido criadas juntas”. Com Francis Hime, seu propósito passa também por “expressar uma visão de mundo” próxima à do compositor.
Aos inevitáveis erros não se atem. Se assume, aliás, apreciador tanto de canções em que o texto está em harmonia com a música, quanto daquelas “em que as palavras parecem brigar com o espírito da música”. Cita My Funny Valentine (1937), de Richard Rodgers e Lorenz Hart, e Marina (1947), de Dorival Caymmi, cujo estatuto de “objetos de culto” associa precisamente à disjunção entre a banalidade de suas letras e a qualidade das melodias. Vai mais longe afirmando que “às vezes, a estranheza da relação entre uma música e uma letra pode ser também um ponto de interesse a leituras futuras desses artefatos artísticos”. É, para si, o caso de Não identificado, de Caetano Veloso, que ganhou “uma originalidade imprevista dentro do campo da música popular” quando interpretada por Gal Costa, em 1969. Por isso mesmo, Geraldo Carneiro “se interessa profundamente por tudo o que não seja Eu”. Reconhecendo a importância da voz autoral, vê também nela “um elemento tirânico que te começa a dominar como se você fosse uma espécie de cavalo de santo daquela voz”. Linguagens distintas da sua constituem não uma ameaça; antes são nutrientes que “ampliam muito a possibilidade de você adquirir novas vozes”.
Talvez por isso, seu percurso na ópera venha sendo alimentado precisamente pela curiosidade face à alteridade. A dimensão reflexiva e poética do libreto de Na boca do cão (2017) – música por Sérgio Roberto de Oliveira (1970-2017) – nasce da imersão dramatúrgica na psique da protagonista – a soprano Gabriela Geluda – para propor uma sublimação de seu trauma de infância, transmutando o grito de Gabriela quando em criança fora atacada pelo cão, na voz conquistada por Geluda que, adulta, se fez cantora. Sua atenção ao “outro” não se cinge, porém, a suas parcerias de trabalho.
Durante a entrevista Geraldo Carneiro levantou a hipótese de que “interessa pouco – o repertório da tradição – para as pessoas do mundo de hoje”. Ao escrever o texto da ópera Migrações (2019) – música de Beto Villares e Armando Lôbo – “quis que tivesse uma estrutura meio multifacetada e que a gente pudesse, através de determinados signos e símbolos, falar disso de uma maneira mais generalizada”.
Refere-se às múltiplas migrações e diásporas forçadas que, hoje em dia, esbarram contra portões arbitrária e obstinadamente fechados pelo egoísmo humano, à semelhança do narrado na parábola kafkiana Diante da Lei (1915), que inspirou o libreto. Essa “dor planetária” leva-o a alvitrar a necessidade de uma nova versão de Migrações, na qual fosse já capaz de “contar uma história em que todos esses exílios tivessem lugar”.
No seguimento, à questão sobre a pertinência da arte ser reflexo das questões do nosso tempo, responde que “deve [sê-lo] de uma maneira não panfletária. Isso porque teme que, se assim for, ao centrar o diálogo exclusivamente no presente, a arte incorre no risco de se tornar “efêmera”. “A arte política tem seu lugar. A arte é sempre uma experiência de transformação da realidade... propõe que a realidade se transforme, se amplie... A realidade está sempre aquém da potência da arte. A arte sonha com utopias, sonha com o futuro... tem esse desejo de inventar o futuro, de construir um mundo melhor para todo mundo.”
* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio
![Cena da ópera "Migrações" [Divulgação/Renato Mangolin]](/sites/default/files/inline-images/migracoes.jpg)
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