A cena como um espaço de experiência e de crítica

por Redação CONCERTO 30/12/2021

Por Andrea Dário*

O aclamado e irreverente encenador americano Peter Sellars participou como palestrante do Ateliê de Criação e Dramaturgia do Palácio das Artes. O projeto foi idealizado pelo maestro Gabriel Rhein-Schirato e pela encenadora Lívia Sabag, que juntos promoveram o trabalho com a presença de 42 alunos com diferentes formações; reunidos em uma live realizada no dia 17 de setembro, eles tiveram acesso às mirabolantes ideias de Sellars e também à rara oportunidade de refletir com ele sobre um trabalho experimental polêmico que tem pautado sua relação com o teatro e a ópera.

Na sala repleta de livros pra todos os lados, como em uma instalação cenográfica, Sellars tem um discurso entusiasmado, inflamado, eufórico, em ritmo acelerado, eloquente: as frases de longo fôlego eram quase sempre finalizadas por constantes e espontâneas gargalhadas.

O diretor nos convida a ampliar nosso poder de escuta: fala sobre “ver o invisível” ou “ouvir o inaudível”. Afirma que cada pessoa soa, porque há em cada ser sensível uma música intrínseca que nos move. É através dela que nos expressamos e nos comunicamos, mas ele nos aconselha a buscar sons que não ouvimos normalmente, porque precisamos mergulhar no “desconhecido”, fazer uma pesquisa interior, como se entrássemos em um estado de meditação profundo.

Para Sellars, é possível investir em um comportamento mais interessante quando nos apropriamos de elementos simples, tornando-os fenômenos muito importantes – o que se dá conforme manipulamos nossas emoções para obter maior profundidade através de atos simples. Simples, mas muito valiosos, se assim o considerarmos cada vez que nos perguntarmos sobre o verdadeiro sentido das relações com os outros e com o mundo.

O diretor pontua que sempre devemos nos perguntar: o que busco provocar? Escrever uma cena, para Sellars, é um momento de falar a verdade, de provocar sentimentos verdadeiros, de ser sincero quanto a esses sentimentos. Ele afirma que o “sozinho” não existe: estamos sempre acompanhados de muitas pessoas, as ideias pertencem a todos, e a ninguém, porque se transformam em contato com o outro. Desse modo, ele se interessa pelo que chama de “cosmologia que há entre as pessoas”.

Assim, um bom caminho para a criação de um libreto “é utilizar a mesma dinâmica do Tao, na busca pelo equilíbrio das forças yin e yang”. De acordo com essa forma de pensamento, tudo que existe no universo deriva do conflito de opostos, onde o positivo não vive sem o negativo, e vice e versa; não são rivais, mas complementares. “Quem escreve um libreto deve inspirar o compositor a escrever música, inspirar música onde tem que haver música, nos levar a dimensões mais profundas em um misto de ficção e do que é verídico, com elementos documentais ao lado da poesia, abrindo mundos invisíveis."

O processo criativo de Sellars é desencadeado por diferentes tipos de conteúdo conectados ao tema. No caso do filme O mercador de Veneza, por exemplo, ele e sua equipe leram livros de todos os tipos com relação às peças de Shakespeare ou então Bíblia – o diretor comparou o teatro ao milagre de Jesus na multiplicação dos pães. E disse que, no teatro, o milagre acontece todos os dias, pois ele alimenta o espírito e a alma. Ao fazer uma ação, cria se o futuro a partir do nada e o teatro serve para dar esperança às pessoas que assistem – é um ato de empoderamento que deve ser alimentado.

Sellars também falou sobre o trabalho com os cantores: sopranos têm que cantar na hora certa, a nota certa, o tempo tem que ser preciso, lembrou. Mas acrescentou: “Cantores são seres humanos que precisam de amor, afeto, e quando não se sentem adequados, podem ser arrogantes. As pessoas precisam ser sentir acolhidas, bem acompanhadas. O diretor tem que ser amigo, tem que procurar saber o que cada artista sente, saber do que tem medo e o encorajar a enfrentá-lo. O diretor tem que apoiar os intérpretes no momento em que expõem as suas fragilidades, dores, fazer com que eles se revelem, reconheçam o que estão oferecendo de suas profundezas. Assim, terão confiança para mostrar o que nunca mostraram antes pra ninguém. 

O ator, na concepção de Sellars é o poeta da cena, a escreve com seus gestos, ritmos, com sua linguagem textual, visual e sonora. Sellars propõe transformar a cena em um lugar de experiência e de crítica, para pensar nas mudanças da sociedade, submetendo a vida a uma transformação artística. O mundo dramático é, afinal, um mundo de ações, de forças, impregnado de qualidades emocionais, rodeado por uma atmosfera especial capaz de refletir e representar o mundo.

Para Sellars, estamos aqui para sermos criativos, mudar as coisas, realizar transformações poderosas em nossas vidas e no mundo ao nosso redor. E o diretor insiste: devemos seguir o sentimento mais profundo para criar situações a serem discutidas na cena, que pode ser abstrata ou retratar o cotidiano da vida; e, quanto mais verdadeiros e sinceros forem os artistas, mais forte e potente será a cena.

Sellars encerrou sua fala afirmando que, de sua própria experiência de vida, concluiu que tudo que recebemos é um "presente", mas que nada nos pertence. Com uma fisionomia calma, a sua imagem se congela com um sorriso ainda mais tranquilo antes de se desconectar. “Algumas coisas têm que ser indizíveis. E como podemos dizer o indizível?”

* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio

Peter Sellars durante conversa com os alunos do Ateliê de Criação [Reprodução]
Peter Sellars durante conversa com os alunos do Ateliê de Criação [Reprodução]

 

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