Um corpo que canta: uma conversa com Gabriela Geluda

por Redação CONCERTO 30/12/2021

Por Guilhermina Lopes*

"Voz é corpo." Quem já estudou canto ouviu essa frase ao menos uma vez na vida, quando não todo dia. Gabriela Geluda, cantora, atriz e professora de Técnica de Alexander, é uma das pessoas que levam particularmente a sério.

Um dos nomes de referência na música vocal contemporânea, reconhecida sobretudo por suas interpretações das obras de Jocy de Oliveira, Geluda foi entrevistada pela também cantora e pesquisadora Claudia Alvarenga em uma live que foi ao ar no dia 27 de novembro no canal da Fundação Clóvis Salgado no YouTube, como parte da programação da Academia de Ópera 2021.

Seu primeiro contato, enquanto performer, com a música contemporânea, deu-se quando ainda era estudante de graduação na Unirio, com sua participação na ópera Illud Tempus, de Jocy de Oliveira, por indicação de sua professora Eliane Sampaio. Gabriela já tinha assistido fascinada a óperas de Jocy, e lhe chamavam a atenção a sonoridade diferente e a narrativa não linear. Iniciou-se, nesta ocasião, uma parceria que já dura décadas.

Perguntada sobre seu processo de pesquisa vocal/corporal para a performance, Geluda diz que sempre prefere ter bastante tempo, chegando a pedir aos compositores com antecedência a partitura, mesmo que não terminada, para ir se familiarizando com o material, no que foi sempre atendida por Jocy, e com feedbacks muito precisos ao longo de sua preparação. 

A Técnica de Alexander, que veio a conhecer mais ou menos no mesmo período em que se aproximou da música contemporânea, foi e é para ela uma poderosa ferramenta de trabalho corporal e gestual. Além disso, sua vivência de dança também lhe trouxe muita bagagem. 
Gabriela ainda destaca, na parceria com Jocy, a oportunidade de trabalhar com professores e diretores da área cênica e o aprendizado de questões práticas de produção, que lhe trouxe uma visão do todo. Também é importante, em sua preparação de cada papel, a troca de inspirações e referências – livros filmes etc. –, com a compositora e os diretores. 

As demandas dos diretores variam bastante em cada produção, muitas vezes tirando-a da zona de conforto. Um exemplo foi o pedido de Bruce Gomlevsky, em Na boca do cão, para que ela não aprendesse o texto – apenas a música – antes da preparação cênica.

Gabriela atribui o fato de nunca ter tido uma lesão vocal ou corporal, em grande medida, à flexibilidade emocional e mental trazida por sua vivência da Técnica de Alexander, centrada na consciência corporal e do momento presente. Incentiva fortemente os novos cantores à experimentação e à busca de suas próprias ferramentas auxiliares a partir de suas vivências extramusicais.

Sua relação com Jocy sempre envolve desafio, mas muita confiança. Lembra-se de quando aceitou prontamente participar da ópera As Malibrans, sendo que teria apenas dez dias para a preparação. Foi um período de trabalho intenso – cerca de dez horas por dia – não numa abordagem física e vocalmente exaustiva, mas com estudo, reflexão, meditação e, obviamente, momentos de descanso. Ajudou ter disponível uma gravação da obra. Se fosse uma estreia, disse, seria bem mais complicado.

Sempre lamenta fazer espetáculos com muito investimento em preparação e divulgação e poucas récitas, infelizmente a situação predominante na ópera e música de concerto. Nesse sentido, uma boa experiência foi a ópera Na boca do cão, com música de Sérgio Roberto de Oliveira, que ficou em cartaz no CCBB-RJ por sete semanas, com quatro récitas por semana. 

Geluda não identifica uma separação rígida entre o preparo para o canto e sua vida no dia a dia. Nossa cultura, a seu ver, demanda um excesso de atenção que acaba por gerar tensão. As crianças, alertas, curiosas e sempre atentas ao que lhes interessa, viveriam naturalmente um estado de atenção expandida, que a Técnica de Alexander busca recuperar. Essa consciência seria fundamental para o trabalho dos cantores, sobretudo no que se refere à presença no palco, um grande desafio.

 

No canto contemporâneo é necessária uma “disponibilidade aventureira”, diz, não só da voz, mas de todo o corpo. Geluda é particularmente empolgada por situações de maior exigência física. Já tocou piano na água, ficou pendurada por cordas, caiu de uma ladeira, sempre com o devido cuidado para não se machucar. 

Ela lembra a filmagem noturna da ópera cinemática Liquid Voices, de Jocy, num cenário bastante inóspito: as ruínas do Cassino da Urca. Ajudou muito nessa produção o fato de ela já ter sido feita anteriormente no teatro; a relação com seu parceiro de elenco, o tenor Luciano Botelho, por exemplo, já estava bem estabelecida. Também a questão da dosagem do volume vocal foi facilitada, por já terem sido usados microfones no teatro. 

Nas montagens de obras de Jocy, a compositora tem sempre desde o início uma visão do todo em cada detalhe, com tudo muito “pronto” em sua cabeça. Em parcerias com outros autores, o trabalho de construção da obra costuma ser mais colaborativo. No caso da ópera Na boca do cão, o tema surgiu de um episódio de infância de Gabriela, em que foi mordida por um cachorro, experiência à qual a cantora até mesmo atribui sua escolha profissional. Foi uma sugestão do diretor, Bruce Gomlevsky, seu primo, que conhecia a estória, prontamente abraçada pelo compositor Sérgio Roberto de Oliveira e pelo libretista Geraldo Carneiro. “Por que não o cantor propor um tema ao compositor se é ele quem vai dar voz à personagem? Não precisa só ficar esperando ser chamado”, acredita. 

Trabalhar com novas pessoas sempre é um grande aprendizado. Sobre esse aspecto, lembra a direção de Duda Maia, na ópera Migrações, com música de Beto Villares, arranjos de Armando Lôbo e libreto de Geraldo Carneiro. Foi a primeira ópera da diretora, que vem do teatro musical. Uma direção a partir do corpo, mas de um jeito diferente do que Geluda já tinha vivenciado. 

Com relação ao contexto da pandemia, a principal experiência foi gravar em sua casa a miniópera Penélope 19, concebida, escrita, composta, dirigida e editada por Armando Lôbo. Foi, sem dúvida, uma divertida experiência de reinvenção, mas o palco lhe faz muita falta, mesmo atuando em um gênero tão multimídia. Embora não tenha ainda nada programado, Gabriela encerrou a entrevista reforçando sua esperança de voltar a fazer espetáculos presenciais em 2022. 

* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio

Gabriela Geluda durante entrevista na programação do Ateliê de Criação [Reprodução]
Gabriela Geluda durante entrevista na programação do Ateliê de Criação [Reprodução]

 

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