Encenação de corte tradicional tem concepção e direção cênica de Pedro Salazar e direção musical e regência de Alessandro Sangiorgi
Madame Butterfly, de Puccini, é uma das grandes óperas históricas que hoje costuma aparecer na lista de obras consideradas politicamente problemáticas. Motivos não faltam: temos a questão do machismo e do orientalismo – uma jovem japonesa submetida à vontade de um homem do Ocidente –, em um contexto marcado pela desigualdade e pelo imperialismo norte-americano. Butterfly é tratada como adorno exótico e esposa de oportunidade por Pinkerton, cuja atitude revela também a visão colonialista da época. E tudo isso aparece dentro de um contexto social que não apenas aceita essas condições, como em certa medida funciona a partir delas.
Porém, como acontece com toda verdadeira obra de arte, Madame Butterfly é uma ópera de múltiplas camadas, não um libelo engessado que exalta aquele sistema machista e misógino. Pensei nisso, ao assistir no sábado (29/11) à encenação em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em que Butterfly emerge com uma humanidade tão intensa, que reduz Pinkerton e alguns dos personagens a figuras desprezíveis, por vezes abjetas.
É essa a linha desta nova montagem de Madame Butterfly, concebida e dirigida pelo diretor colombiano Pedro Salazar (Salazar entende do assunto, são dele também as recentes encenações produzidas pelo Festival Amazonas de Ópera de La Voragine, de J.G. Ripper, e de Peter Grimes, de Britten, que venceu o Prêmio CONCERTO 2022). Nesta Butterfly, a concepção cênica realça a dignidade de Cio-Cio San, mesmo em meio a todo o contexto social e cultural adverso em que vive. Seu amor, entrega e perseverança ganham ares de uma honestidade singular, que dá sentido a sua última intervenção: com honra deve morrer quem não pode viver honradamente.
O cenário da montagem mostra uma região de periferia com a pequena casa japonesa de Cio-Cio San cercada por construções pobres e degradadas. Uma escadaria leva para o alto da colina. No fundo vemos o céu, que no último ato é encoberto por um grande e radioso “sol nascente” pintado sobre faixas. Os figurinos são caprichados, em cores mais escuras, o que realça o branco luminoso das vestimentas de Cio-Cio San. Mas o diferencial da direção é a perfeita movimentação e atuação dos atores, com que Salazar logra uma narrativa muito fluente e cria momentos de grande tensão emocional.
O sucesso da produção deve-se também ao bom elenco, no todo bem equilibrado. Em primeiro lugar, é preciso destacar a extraordinária interpretação de Eiko Senda como Cio-Cio San. Em sua performance, a solista – que já cantou Butterfly inúmeras vezes – demonstrou não apenas absoluto domínio do papel, mas também compreensão do desenvolvimento dramático da obra. Gostei especialmente das passagens mais líricas, cantadas de modo comovente, com lindo timbre e cuidado no vibrato.
Pinkerton foi interpretado pelo ótimo tenor Matheus Pompeu, com boa presença cênica e voz de ricos matizes. E foram igualmente muito boas as apresentações de Inácio de Nonno como um condolente Sharpless, Luciana Bueno fazendo Suzuki com intensa compaixão e Geilson Santos como o ganancioso Goro. Completaram o elenco Murilo Neves (Bonzo), Fernando Lorenzo (Yamadori), Mariana Gomes (Kate Pinkerton) e Flavio Mello (comissário).
A Orquestra e o Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro soaram bem e, sob a condução de Alessandro Sangiorgi, imprimiram bom ritmo e teatralidade à música.
Voltando às discussões em torno de Butterfly, não devemos nos esquecer de que as obras de arte precisam ser entendidas dentro do contexto em que foram criadas. Os tempos mudam — e mudam também as formas como compreendemos e interpretamos essas obras.
Na ópera, além da música e de toda a experiência sensorial que ela proporciona, existe uma dimensão interpretativa que desdobra conceitos cênicos e novas leituras. Uma montagem pode ser moderna ou tradicional, a questão não é essa. O que realmente importa é o resultado artístico que se alcança.
A montagem carioca de Madame Butterfly, de corte tradicional, assume plenamente a linguagem da ópera e a trata como a arte rica e desafiadora que é. Ao fazê-lo com competência e sensibilidade, demonstra como é possível a grande – e problemática – ópera Madame Butterfly funcionar, emocionar e dialogar com os nossos dias.

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