‘Madame Butterfly’ recebe emocionante montagem no Theatro Municipal do Rio de Janeiro

por Redação CONCERTO 01/12/2025

Encenação de corte tradicional tem concepção e direção cênica de Pedro Salazar e direção musical e regência de Alessandro Sangiorgi

Madame Butterfly, de Puccini, é uma das grandes óperas históricas que hoje costuma aparecer na lista de obras consideradas politicamente problemáticas. Motivos não faltam: temos a questão do machismo e do orientalismo – uma jovem japonesa submetida à vontade de um homem do Ocidente –, em um contexto marcado pela desigualdade e pelo imperialismo norte-americano. Butterfly é tratada como adorno exótico e esposa de oportunidade por Pinkerton, cuja atitude revela também a visão colonialista da época. E tudo isso aparece dentro de um contexto social que não apenas aceita essas condições, como em certa medida funciona a partir delas.

Porém, como acontece com toda verdadeira obra de arte, Madame Butterfly é uma ópera de múltiplas camadas, não um libelo engessado que exalta aquele sistema machista e misógino. Pensei nisso, ao assistir no sábado (29/11) à encenação em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em que Butterfly emerge com uma humanidade tão intensa, que reduz Pinkerton e alguns dos personagens a figuras desprezíveis, por vezes abjetas. 

É essa a linha desta nova montagem de Madame Butterfly, concebida e dirigida pelo diretor colombiano Pedro Salazar (Salazar entende do assunto, são dele também as recentes encenações produzidas pelo Festival Amazonas de Ópera de La Voragine, de J.G. Ripper, e de Peter Grimes, de Britten, que venceu o Prêmio CONCERTO 2022). Nesta Butterfly, a concepção cênica realça a dignidade de Cio-Cio San, mesmo em meio a todo o contexto social e cultural adverso em que vive. Seu amor, entrega e perseverança ganham ares de uma honestidade singular, que dá sentido a sua última intervenção: com honra deve morrer quem não pode viver honradamente. 

O cenário da montagem mostra uma região de periferia com a pequena casa japonesa de Cio-Cio San cercada por construções pobres e degradadas. Uma escadaria leva para o alto da colina. No fundo vemos o céu, que no último ato é encoberto por um grande e radioso “sol nascente” pintado sobre faixas. Os figurinos são caprichados, em cores mais escuras, o que realça o branco luminoso das vestimentas de Cio-Cio San. Mas o diferencial da direção é a perfeita movimentação e atuação dos atores, com que Salazar logra uma narrativa muito fluente e cria momentos de grande tensão emocional.

O sucesso da produção deve-se também ao bom elenco, no todo bem equilibrado. Em primeiro lugar, é preciso destacar a extraordinária interpretação de Eiko Senda como Cio-Cio San. Em sua performance, a solista – que já cantou Butterfly inúmeras vezes – demonstrou não apenas absoluto domínio do papel, mas também compreensão do desenvolvimento dramático da obra. Gostei especialmente das passagens mais líricas, cantadas de modo comovente, com lindo timbre e cuidado no vibrato.

Pinkerton foi interpretado pelo ótimo tenor Matheus Pompeu, com boa presença cênica e voz de ricos matizes. E foram igualmente muito boas as apresentações de Inácio de Nonno como um condolente Sharpless, Luciana Bueno fazendo Suzuki com intensa compaixão e Geilson Santos como o ganancioso Goro. Completaram o elenco Murilo Neves (Bonzo), Fernando Lorenzo (Yamadori), Mariana Gomes (Kate Pinkerton) e Flavio Mello (comissário).

A Orquestra e o Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro soaram bem e, sob a condução de Alessandro Sangiorgi, imprimiram bom ritmo e teatralidade à música. 

Voltando às discussões em torno de Butterfly, não devemos nos esquecer de que as obras de arte precisam ser entendidas dentro do contexto em que foram criadas. Os tempos mudam — e mudam também as formas como compreendemos e interpretamos essas obras.

Na ópera, além da música e de toda a experiência sensorial que ela proporciona, existe uma dimensão interpretativa que desdobra conceitos cênicos e novas leituras. Uma montagem pode ser moderna ou tradicional, a questão não é essa. O que realmente importa é o resultado artístico que se alcança. 

A montagem carioca de Madame Butterfly, de corte tradicional, assume plenamente a linguagem da ópera e a trata como a arte rica e desafiadora que é. Ao fazê-lo com competência e sensibilidade, demonstra como é possível a grande – e problemática – ópera Madame Butterfly funcionar, emocionar e dialogar com os nossos dias.


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Artistas são aplaudidos após apresentação da ópera Madame Butterfly, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (Revista CONCERTO)
Artistas são aplaudidos após apresentação da ópera Madame Butterfly, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (Revista CONCERTO)

 

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