Orquestra de Câmara da USP apresentou no Theatro São Pedro a Symphonia botanica, de Michelle Agnes, obra-símbolo de um dos maiores dramas de nosso tempo
Concertos como o da manhã do último domingo, 26, no Theatro São Pedro, permanecem no tempo como modelares, no sentido de que comunicam-se imediatamente com o público (com qualquer público) e, ao mesmo tempo, mantêm a chama da música viva, aquela que se constrói no momento em que vivemos, que fala de nossa realidade.
Quatro obras no programa, duas estreias mundiais. O concerto da Orquestra de Câmara da USP e seu regente Ricardo Bologna insere-se em sua temporada 2025 intitulados “OCAM Conecta - Territórios Paulistas”. Duas destas estreias, porém, provocaram verdadeiras imersões do público, e por motivos diferentes. De um lado, Ricochet, concerto triplo para pingue-pongue, violino, percussão e orquestra, de Andy Akiho. Obra concebida para mexer com o público, impacta nos primeiros minutos, mas perde o timing repetindo-se. A deficiência clara, neste caso, é encompridar demais. O timing neste tipo de obra é fundamental, já nos ensinava Gilberto Mendes em obras como a antológica Ópera aberta para soprano e halterofilista.
Já La ursa: Variações sobre uma cantoria, de Carlos dos Santos, em primeira execução mundial, foi perfeita no timing. Um compositor a se acompanhar com atenção.
Mas a obra magna do concerto toca na questão mais central da nossa sobrevivência, a médio prazo, no planeta. Estou falando da Symphonia botanica para solistas, coro, orquestra de cordas e percussão, da compositora brasileira Michelle Agnes. Nasceu por encomenda conjunta da OCAM, Ensemble L’Itinéraire e Theatro São Pedro, e integra a programação do Ano da França no Brasil, promovida pelo Ministério da Cultura da França.
Na medida em que a ótima soprano Laiana Oliveira dizia textos emocionantes do xamã Davi Kopinawa, com a orquestra reproduzindo o farfalhar das folhas, os maravilhosos sons da floresta, me senti imerso nas entranhas da Amazônia, e transportado para Os passos perdidos, obra-prima de Alejo Carpentier. Este narrou magistralmente a imersão do etnomusicólogo recém-chegado de Manhattan que tem uma epifania ao adentrar a floresta. Numa cena memorável, ele ouve, envolto na noite na selva, o canto ritual de um feiticeiro diante de um cadáver cercado por cães. E sente que compartilha o nascimento da música por meio do canto.
Não é acaso que Michelle tenha nascido em Campo Grande, no Mato Grosso. E que, entre seus mestres, estejam José Eduardo Gramani, criador do grupo Anima, e Koellreutter. Na partitura, ela escreve que “é um projeto colaborativo que repensa a composição musical para coletivos e orquestras, propondo métodos e práticas para reestruturar as relações no interior da orquestra tradicional. Através de uma abordagem orgânica, busca nutrir interações entre musicistas e seu ambiente, criando níveis mais profundos de escuta e colaboração. A orquestra-floresta se manifesta como uma rede de inteligência distribuída, inspirada no mundo vegetal”.
A Symphonia botanica de Michelle Agnes é daquelas obras-símbolo de um dos maiores dramas de nosso tempo, um convite para que as 170, 180 nações reunidas em Belém do Pará na COP-30 – Conferência das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas reflitam sobre este alerta de Davi Kopenawa: “A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”.
A Symphonia termina com um tributo certeiro a Hermeto Pascoal, que nos deixou há pouco. É a sexta e última parte. Intitula-se Ponta de Mata – In Memoriam Hermeto Pascoal. A compositora esclarece: “A partir da transcrição de Veríssimo de Melo, recriação e letra Michelle Agnes Magalhaes”. Entre as indicações na partitura para os músicos estão: “entre choro e jazz, sonoridade ruidosa e rica” (para flauta baixo); “pequeno set de objetos imitando animais na mata” (para percussão); para o finale: “como um baião barroco”.
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