Vigor e refinamento

Selo Naxos lança registros das Fantasias brasileiras de Mignone com a Osesp e o pianista Fabio Martino

Dois anos depois, chega ao disco um dos momentos mais empolgantes da história recente da Osesp. Em 2023, sob a batuta de Giancarlo Guerrero, a orquestra tocou na Sala São Paulo, em duas semanas consecutivas, as quatro Fantasias brasileiras e a Burlesca e Toccata, todas para piano e orquestra, de Francisco Mignone (1897-1986), com solos de Fabio Martino. O resultado desses quinze dias efervescentes é um disco que acaba de ser lançado pela Naxos, dentro da série Brasil em Concerto.

A exemplo de Chostakóvitch, Mignone foi um músico completo, igualmente dotado de talento com a batuta, ao teclado e na composição. De sangue italiano, seguia a veia peninsular de seus ancestrais na juventude, até ser devidamente “enquadrado” por Mário de Andrade, que o induziu a compor na linha nacionalista.

Cada Chostakóvitch tem o Stálin que merece. Se a quinta sinfonia do compositor russo, estreada em 1937, foi sua demonstração pública de aceitação das críticas do editorial do Pravda que condenava a ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, as Fantasias brasileiras de Mignone, compostas entre 1929 e 1936, podem ser vistas como respostas criativas às ressalvas do autor do Ensaio sobre a música brasileira (onde está escrito que “todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira é um ser eficiente com valor humano. O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta”).

De besta, Mignone não tinha nada. Tinha sim um conhecimento profundo do teclado e seus recursos técnicos, e um talento esfuziante de orquestrador. Todas as fantasias foram estreadas por um músico tão completo como Mignone, o cosmopolita e versátil Souza Lima, e este fato, aliado à proximidade temporal entre elas, bem como à semelhança estrutural, permite enxergá-las como uma espécie de ciclo de obras cujo melodismo cativante e rítmica forte conferem o caráter “nacional”, aliado a uma linguagem harmônica que à época poderia ser considerada “moderna”.

Não por acaso, as obras se tornaram cartões de visita internacionais de Mignone, sendo registradas em uma época em que a série da Naxos não existia nem em sonho, e que qualquer gravação de música brasileira de concerto era uma utopia. Existe um registro da primeira com o pianista campineiro Bernardo Segall e a NBC Orquestra, sob a batuta do legendário e tirânico Arturo Toscanini, enquanto Mignone gravou a terceira com o pianista espanhol Tomás Terán (bastante associado à obra de Villa-Lobos) e a Orquestra do Sindicato Musical do Rio de Janeiro, como uma das peças escolhidas para representar a música de nosso país na Feira Mundial de Nova York (1940). Posteriormente, Mignone e Souza Lima registrariam ainda as duas primeiras fantasias com a OSB, para o selo Festa.

Na época dessa última gravação (1958), o compositor retornaria à fórmula de peça breve para piano e orquestra, da qual uma referência inescapável era a Burleske (1886) de Richard Strauss – que chegou a reger a Congada de Mignone em turnê brasileira da Filarmônica de Viena. Talvez não seja acaso o compositor intitular sua partitura de Burlesca e Toccata – uma espécie de olhar retrospectivo e bem humorado para as fantasias, duas décadas depois, acrescendo um elemento surpreendente: a pimenta da atonalidade.

Dono de um pianismo exuberante e extrovertido, Fabio Martino interpreta as obras com um vigor que não exclui o refinamento. Ao mesmo tempo em que tira a Osesp para dançar, ele cuida dos detalhes e procura interagir cameristicamente com seus membros. Comandada pelo não menos caloroso Giancarlo Guerrero, a orquestra responde à altura, parece se lembrar de que São Paulo, afinal, é uma metrópole latino-americana e, em vez de soar como um simulacro de sinfônica europeia radicada no Brasil, exibe suas credenciais de autêntica orquestra brasileira. Da orquestra que ela merece ser e que o Brasil merece ter.

[O disco com as 'Fantasias brasileiras' está disponível na Loja Clássicos; clique aqui.]

Fabio Martino durante concerto com a Osesp [Divulgação]
Fabio Martino durante concerto com a Osesp [Divulgação]

 

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