Cinco décadas de ECM

por João Marcos Coelho 20/12/2019

Não consigo terminar 2019 sem falar do 50º aniversário da gravadora ECM – Editions of Contemporary Music, fundada em novembro de 1969 por Manfred Eicher, ex-contrabaixista e produtor, então com 26 anos. Não tenho vergonha de afirmar que as gravações deste selo de Munique modificaram, ao longo do tempo, o modo como penso e ouço música. 

Quando ela surgiu, meio século atrás, com “Free at last”, gravação do trio do pianista norte-americano de jazz Mal Waldron, nada fazia supor os rumos inovadores que seguiria nas décadas seguintes, quebrando paradigmas e preconceitos, sobretudo as violentas patrulhas ideológicas da vanguarda de Darmstadt contra tudo que não rezasse rigorosamente pela cartilha deles. De nada adiantou, como se viu, Pierre Boulez vociferar que todo compositor que não compuser música dodecafônica é um imbecil. A ECM foi decisiva para destruir este e outros dogmas idiotas que colocavam a música contemporânea numa camisa-de-força injustificável.

O francês de ascendência húngara Peter Szendy, filósofo agudo de nossa época, que tem na música um território privilegiado de sua reflexão crítica, afirma que cada época tem um ideal de escuta e um ideal de obra. “Se continuo hoje a amar Mozart, Beethoven, Schumann, Liszt, Berlioz, Mahler, Schoenberg, Boulez e tantos outros, é porque ouço de outra maneira; e este ‘outra maneira’ ainda não aconteceu, não foi entrevisto e nem poderia ser calculado ou deduzido de algum modo a partir do que foi. Se eu os amo, é precisamente porque eles continuam também a não integrar um sistema, ou época”, escreveu em 2002 na revista canadense de música contemporânea Circuit.

A primeira grande lição de Eicher e sua ECM é justamente este “ouvir de outra maneira” as músicas – assim mesmo, no plural – do nosso tempo.  E também as do passado que permanecem nos inquietando por sua capacidade de não serem enquadradas em sistema algum.

A segunda foi sua atuação decisiva no domínio das músicas instrumentais improvisadas. Entre outras façanhas, convenceu o pianista Keith Jarrett da viabilidade de se apresentar em recitais totalmente improvisados a partir do célebre Köln Concert, em 25 de fevereiro de 1975, em Colônia, Alemanha. Lançado o LP, ele vendeu até hoje, sob vários formatos, do CD ao mp3, mais de 4 milhões de unidades.

A terceira lição foi literalmente soltar as amarras de criadores musicais que se viam tolhidos pelas patrulhas da “neue musik”. Assim nasceu um nicho, que virou avenida e hoje é uma das mais caudalosas vertentes da música do nosso tempo. Nomes como o estoniano Arvo Pärt (a venda da gravação de Fratrês, com Gidon Kremer e Jarrett, também é contabilizada em milhões) e muitos outros.

Arvo Part e Manfred Eicher [Divulgação]
Arvo Part e Manfred Eicher [Divulgação]

A quarta lição foi a perspectiva inclusiva de Eicher. De repente, Luciano Berio gravou pela ECM; obras de Stockhausen também mereceram registros. Boulez, idem, ibidem. E, sobretudo as produções do norte da Europa, até então praticamente desconhecidas no chamado eixo central do “Ocidente” europeu até então acostumado a considerar que só valia a pena a música produzida nos seus domínios brancos, cristãos.

A quinta e última é obra de gênio: Eicher voltou-se para o grande repertório da música do passado, do barroco ao romântico. Assim, por exemplo, nasceram integrais fascinantes das sonatas de Beethoven por Andras Schiff, um dos mestres maiores do piano do nosso tempo, que só grava para Eicher. Assim também outro mestre, o suíço Heinz Holliger, que nos maravilhou há pouco ao comandar uma execução magistral de Dos cânions às estrelas, obra magna de Olivier Messiaen, com músicos da Osesp em total estado de graça.

Hoje, aos 76 anos, Eicher permanece tão inquieto quanto meio século atrás: banca uma integral dos quartetos de Beethoven com o Quarteto Dinamarquês. 

Ia esquecendo. O nosso Egberto Gismonti é um dos músicos das primeiras levas que foram convidados por Eicher e até hoje pertencem a seu “cast”, como se dizia antigamente das grandes gravadoras hoje defuntas. Gismonti e Naná Vasconcelos lançaram “Dança das Cabeças” em 1976 – até hoje uma gravação seminal da música brasileira em sentido absoluto. Além disso, Gismonti montou seu selo Carmo sob as bênçãos de Eicher, que fabrica os CDs e os distribui mundo afora (o último rebento desta abençoada parceria é o CD de violão solo “O universo musical de Egberto Gismonti”, do excelente violonista Daniel Murray).

Foram muitas as comemorações e eventos realizados durante o ano que está terminando em torno dos 50 anos da ECM. Talvez o mais singelo e significativo seja “Small Places”, uma instalação sonora criada por Mathis Nitschke integrando uma mostra da ECM numa galeria de arte em Seul, na Coréia do Sul, com patrocínio da Hyundai. No cardápio, os visitantes se acomodam em lugares opostos, um em frente ao outro, separados por um fino tecido de gaze; um foco de luz movimenta-se ora em um, ora em outro. Enquanto rola um imenso “looping” de 1.380 horas, quase dois meses ininterruptos, contendo todo o catálogo da gravadora neste meio século, os próprios visitantes tornam-se o objeto artístico, como na relação músico-produtor. O título da exposição, “Small Places” remete ao álbum com este título lançado por Michael Formanek em 2012, que contém uma faixa intitulada “Pong”. A Hyundai vende tanto carro por aqui, poderia bem bancar a vinda desta mostra ao Brasil.

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