Fantasia e realidade na ‘Madame Butterfly’ do Theatro Municipal

por João Luiz Sampaio 22/03/2024

Na produção atualmente em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo de Madame Butterfly, de Puccini, a diretora Livia Sabag deu à ópera de Puccini uma leitura social. Não é uma afirmação errada, tampouco completa. Pois o olhar, na verdade, é menos ponto de partida e mais consequência de uma tentativa de compreender a personagem de Cio-Cio San em suas nuances.

Butterfly tem sido considerada, nos últimos anos, uma ópera problemática. Primeiro, pelo retrato que o compositor faz do Oriente; em segundo lugar, pela história que narra: uma jovem gueixa comprada por um soldado americano, que volta aos EUA, deixando a esposa em angustiante espera pelo seu retorno. Um retorno que acaba significando sua morte.

Pinkerton representaria, nessa leitura, a masculinidade tóxica que a sociedade aprendeu a reconhecer e condenar nos últimos tempos. Mas há de se pensar se esse tipo de leitura não coloca o foco da ópera no personagem errado. Puccini não tinha simpatia especial por Pinkerton. Na primeira versão da ópera, sua ária do último ato, em que fala do remorso pelo que fez, não existia. Apareceu depois, mas de modo particular: as intervenções de Sharpless, que o lembra de que havia sido avisado de que aquilo poderia acontecer, não deixam espaço para que se relativize a culpa. E note-se que, no instante em que o futuro de seu filho é a questão central para todos os demais personagens, ele não o cita nem uma única vez.

Mas deixemos Pinkerton de lado. A questão, nesse tipo de leitura, é que ela faz de Butterfly pouco mais do que uma jovem bobinha e inocente, sem protagonismo em sua própria vida, perdida de amor por um homem que, no fundo, nada sente por ela. Enquanto, na plateia, conscientes das intenções de Pinkerton, testemunhamos sua crença inexplicável no amor.

Mosco Carner, em seu estudo sobre o compositor, chama atenção para aquilo que Butterfly tem de diferente em relação a outros dramas de Puccini. Se os fatos em si, ao menos a maior parte deles, já são conhecidos desde o início, então a “ação intrínseca é psicológica” e está concentrada na figura de Cio-Cio San. Tratar a ópera como uma história de amor é diminuir sua potência, assim como tentar relacionar Butterfly com a linhagem de heroínas que, no século XIX, sofrem com amores não realizados. Há muito mais em jogo do que um amor impossível.

A produção de Sabag parece ser justamente uma busca por compreender Cio-Cio San e como ela enxerga a situação em que se encontra. É só então que o componente social se afirma. A filha do samurai, agora uma gueixa, é uma mulher que perde status e sabe dos desafios que têm pela frente. Não quer, como diz, seguir cantando e divertindo homens. O casamento é a saída possível, com todas as dúvidas que carrega. Dúvidas que Sabag encontra nos meandros do texto e na forma como ele se combina com a música. Butterfly hesita. Não porque é uma jovem inocente, imersa em fantasia. Mas, pelo contrário, porque busca o equilíbrio, talvez impossível, mas humano e real, entre a aceitação da vergonha e a manutenção da honra.

O conceito se traduz no palco de diferentes maneiras. Há de cara os impressionantes cenários de Nicolas Boni, que recusam a estilização do oriente florido em favor de um quadro lúgubre, em que natureza e arquitetura sugerem a decadência já real, misturando contexto e drama pessoal (como fazem também os figurinos de Sofia Di Nunzio). Pois o aspecto social não é estéril. A projeção de cenas de Oharu – A Vida de Uma Cortesã, filme de 1952 de Kenzi Mizoguchi, no interlúdio que leva ao terceiro ato, ao sobrepor desfechos para a história, alcança com poesia um mundo interior marcado por pulsões, desejos, frustrações e sonhos, com o real e a fantasia em uma dilacerante, e profundamente tocante, luta interna.

Há também a luz de Caetano Vilela, inclemente em alguns momentos, e de uma poesia angustiante em outros: a cena em que Butterfly, seu filho e Suzuki esperam pela chegada de Pinkerton dentro de casa, portas fechadas, apenas silhuetas, não é só plasticamente deslumbrante, mas uma preparação para o jogo de projeções que será oferecido em seguida.

E é preciso falar da direção de atores/cantores. Há em geral uma humanização dos personagens, o que não os libera de suas posturas perante a história: pelo contrário, os torna ainda mais violentos em sua visão de mundo. Um exemplo é o Goro menos caricato, na interpretação viva de Jean William. Outro, o Yamadori menos estilizado, que se insere de maneira orgânica na cena em que, com Goro e Sharpless, tenta convencer Butterfly a segui-lo: colocá-los assim, juntos diante de Cio-Cio San, como se fossem uma parede, reforça a violência do que dizem e os limites impostos a ela pela sociedade em que ela tenta se mover.

São pequenos detalhes, que assumem uma significação gigantesca. O modo como Sharpless (o excelente barítono Michel de Souza) se antecipa a ouvir Cio-Cio San quando Pinkerton a ignora; um Pinkerton (Enrique Bravo, em apresentação vocal um pouco hesitante) alheio ao que acontece à sua volta; a Suzuki comovente de Juliana Taino, no instante em que abraça o brinquedo do menino, muito antes que saibamos de sua existência, segurando um choro que, justamente por estar preso, nos diz muito sobre o ambiente em que está inserido ­– e sobre a relação entre força, marca da personagem, e sentimento que perpassa toda a obra.

E há a Butterfly de Eiko Senda. Desde o primeiro momento em que pisa no palco, o que ela nos oferece é uma leitura carregada de urgência e preocupação pelo seu destino, tentando, por exemplo, controlar a família, reforçando o elemento quase teatral do casamento com Pinkerton; da mesma forma, há um olhar que nos quebra por dentro em momentos como a despedida da mãe, ou o cansaço, físico e emocional, que deixa transparecer logo no início do segundo ato. Não há um gesto sem sentido, sem intenção, e eles encontram eco na leitura vocal matizada, levada ao extremo em seus contrastes. É puro artesanato.

Mas há, no todo, um limite que nem sempre é possível superar: uma direção musical, a cargo de Roberto Minczuk, à frente da Orquestra Sinfônica Municipal, que soou apressada, descuidada, na maior parte do tempo forte demais, pouco preocupada com sutilezas da partitura ou com as mudanças de clima teatral, um prato cheio que Puccini oferece – e que permaneceu intocado. Alento, porém, foi ouvir o Coral Paulistano, preparado por Maíra Ferreira e Isabela Siscari, fazendo música. Que coro a bocca chiusa memorável!

A produção de 'Madame Butterfly' segue em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo até o dia 23 de março; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

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Madame Butterfly [Divulgação]
Madame Butterfly [Divulgação]

 

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