A vida de Franz Liszt

por Leonardo Martinelli 01/01/2011

Em uma época em que as práticas musicais passavam por intensas transformações, poucos compositores encarnaram de maneira tão ampla todas as delícias, os infernos e os paradoxos do espírito romântico, como Franz Liszt o fez. Pianista ímpar e compositor de grande originalidade, Liszt teve uma vida agitada, talvez mais próxima à de um herói de ficção que a de um músico. Desde um megaestrelato, com direito a surtos histéricos de tietes (então sem precedentes na história da música) à autorreclusão religiosa, sua vida foi permeada por diferentes experiências, refletidas em uma obra tão bela quanto profícua e heterogênea.

Nascido em 22 de outubro de 1811, Ferencz (Franz) foi filho único de Adam Liszt, funcionário a serviço da família Esterházy (a mesma que patrocinou a carreira de Joseph Haydn), talentoso músico amador de quem o jovem também herdaria uma sólida cultura católica (seu pai chegou a ser seminarista na Ordem Franciscana). Sua terra natal era um pequeno vilarejo húngaro, Doborján, à época dominado pelo Império Austro- -Húngaro, hoje cidade austríaca de Raiding. Franz Liszt cresceu já mergulhado em um grande paradoxo: vestiu, literalmente, a camisa da independência pró-Hungria (pois em várias ocasiões fazia questão de usar “trajes típicos”), embora tivesse o alemão como língua materna e fosse incapaz de manter uma conversa em seu idioma pátrio.

Relata-se que já aos seis anos de idade Liszt mostrava excepcional talento ao piano. Dois anos depois, após uma audição pública na corte, seu pai foi encorajado a transferir-se com o filho para Viena, onde Franz teve aulas de piano com Carl Czerny e de teoria musical com Antonio Salieri. Apesar de muito jovem, sua presença foi marcante, tanto que ele foi um dos cinquenta compositores convidados a escrever uma das variações sobre um tema de Anton Diabelli. Foi também em Viena que o jovem Liszt conheceu o já reputado Beethoven, por quem nutriu ao longo da vida profunda admiração, tendo sido um de seus principais divulgadores.

Mesmo que Viena fosse uma das principais capitais musicais da época, seu pai viu em Paris o local para um melhor aproveitamento de seu talento. Em 1823, ambos se transferiram para lá, mas, por conta de implicâncias políticas contra estrangeiros, foi negada ao prodígio a admissão em seu famoso conservatório. Não se dando por vencidos, pai e filho empreendem vários concertos na cidade, intermediados por apresentações na Inglaterra. Foram anos de intensa atividade, em que o nome de Liszt foi amplamente divulgado como pianista, ao mesmo tempo em que passou a compor suas primeiras obras. Porém, tudo mudaria com a morte do patriarca, em meados de 1827.

Com apenas 16 anos, Liszt viu-se obrigado a assumir a imensa responsabilidade de sustentar e administrar sozinho sua carreira e a vida de sua mãe, que passaria a morar com uma irmã em Paris. Foi neste momento que seu nome firmou reputação na cena musical e na alta sociedade parisiense. Liszt trava contato com músicos importantes, como Berlioz, Chopin e Paganini, ao mesmo tempo em que inicia as intrépidas aventuras com seu primeiro grande amor, a condessa Marie d’Agoult.

À época casada e seis anos mais velha que Liszt, d’Agoult vivia um casamento infeliz que lhe dera duas filhas. Em 1835 ficou grávida de Liszt. Para evitar um escândalo maior, ambos decidem então abandonar Paris e se refugiar na Suíça. Vivendo um grande amor, que no total geraria três filhos (entre os quais, a futura senhora Richard Wagner, Cosima), o casal estendeu o exílio para uma temporada na Itália. Liszt só voltou à capital francesa quando soube do sucesso do pianista Sigismond Thalberg e sentiu sua reputação ameaçada. Marcou-se um duelo musical entre os dois, embate do qual repetiu-se à exaustão o seguinte placar: “Thalberg é o pianista número um do mundo, mas Liszt é único”.

Entre os anos de 1839 e 1847, Liszt voltou ao universo das turnês. Foi então que o artista deu novo significado ao conceito de recital de piano (aliás, foi o primeiro a utilizar o termo hoje tão consagrado), ao programar um repertório eclético (desde peças de Bach às suas modernas criações), tocar tudo de cor e fazer da ocasião um verdadeiro espetáculo. Durante uma série de apresentações em Berlim, relata-se que foi tal o frenesi de sua presença que, ao deixar a cidade, Liszt teria sido conduzido em uma luxuosa carruagem, em meio a uma pequena multidão que o seguia, até o Portão de Brandenburgo.

Nesse ínterim, termina sua união com d’Agoult e Liszt passa a se relacionar com outra nobre casada, desta vez a princesa Carolyne von Sayn-Wittgenstein. Tendo a conhecido durante uma série de recitais em Kiev, em 1848, Carolyne e Liszt radicam- se em Weimar, onde Liszt aceita trabalhar como mestre-de-capela. Mais que se tornar um serviçal da corte, o cargo (já então bem fora de moda) foi na verdade um presente do duque Carl Alexander. O novo trabalho deu a Liszt estabilidade que lhe permitiu diminuir o número de viagens e dedicar-se a novos projetos musicais. Sua casa na cidade, conhecida como residência Altenburg, tornou-se um grande centro de debate sobre arte moderna, para a qual afluíram nomes como Wagner, Berlioz e o jovem Brahms (que posteriormente romperia com Liszt).  Após uma década em Weimar, encerrou-se a lua-de-mel do compositor com a sociedade artística local e, decidido a ajudar Carolyne no processo de anulação de seu casamento, Liszt mudou-se para Roma, em 1861, iniciando uma nova fase de sua existência espiritual.

Se o paradoxo é uma das mais fortes características do espírito romântico, poucos compositores viveram de maneira tão paradoxal como Liszt. Se de um lado é inegável a vida mundana que levou – regada a viagens, festas na alta sociedade e vários “pequenos amores” em meio a suas duas grandes paixões –, é igualmente notável o alto grau de misticismo e religiosidade que permearam sua existência. Ainda criança, Liszt chegou diversas vezes a manifestar o desejo pela vida religiosa e, quando da morte do pai, mergulhou em uma profunda introspecção religiosa.

A mudança para Roma e a proximidade com o Vaticano, aliadas ao avanço da idade e à impossibilidade de casamento com Carolyne, Liszt reaproximou-se a tal ponto da Igreja que chegou a travar amizade com o Papa Pio IX. Passando a se dedicar aos estudos teológicos, foi admitido, em 1865, membro de quatro ordens religiosas menores. A partir daí o “Abade Liszt” passou a trajar-se como religioso.

Mesmo a idade avançada não foi sufi ciente para deter seu ímpeto andarilho que, em seus últimos anos de vida, o levou por toda a Europa. Franz Liszt faleceu em Bayreuth, em 31 de julho de 1886, onde estava a convite da filha, Cosima, que então assumira a direção do festival criado por seu marido, morto três anos antes. A morte desta personalidade ímpar encerrava um dos mais significativos capítulos da Era Romântica.

Franz Liszt [Reprodução]
Franz Liszt [Reprodução]

Linha do tempo

1811
Ferencz Liszt nasce em Doborján, na época pertencente à Hungria.

1819 
Muda-se para Viena, onde tem aulas com Czerny e Salieri e conhece Beethoven.

1823 
Mudança para Paris, onde é impedido de ingressar no famoso conservatório daquela cidade.

1824 
Realiza a primeira das muitas viagens que fez à Inglaterra.

1830
Inicia um relacionamento com a condessa Marie d’Agoult.

1835
Exila-se com d’Agoult na Suíça e depois na Itália.

1840
Em passagem por Leipzig conhece Robert Schumann, a quem viria a dedicar a monumental Sonata em si menor.

1847
Inicia seu relacionamento com a princesa Carolyne von Sayn-Wittgenstein.

1848
Junto com Carolyne, muda-se para Weimar, onde torna-se mestre-de-capela.

1854
Compõe sua Sinfonia Fausto, baseada na célebre obra de Goethe.

1861
Muda-se para Roma, onde faz amizade com o Papa Pio IX.

1869
Dividido entre Roma, Weimar e Budapeste, Liszt dedica-se a atividades didáticas.

1886
Morre em Bayreuth, em meio a uma edição do Festival Wagner.