Dança Teatral e algumas reverberações

por Redação CONCERTO 16/04/2024

Por Sayonara Pereira [Sayonara Pereira é professora livre docente e pesquisadora de dança moderna e coreográfica na Universidade de São Paulo, onde dirige o grupo de pesquisas cênicas Lapett. Viveu e atuou na Alemanha entre 1985-2004. Na cena independente brasileira tem participado de projetos com diferentes grupos de dança e teatro, nas funções de preparadora corporal, provocadora ou coreógrafa. É também autora de publicações na área de dança.]

Desde muito tempo os seres humanos dançaram se relacionando com a natureza, para agradecer suas conquistas, para homenagear os seus ancestrais e por muitas outras questões. O século XX é então um século em que a ciência se desenvolveu com bastante pressa, comparando com os séculos anteriores. Aconteceram diversas mudanças, duas grandes guerras mundiais e muitos movimentos para reformar o que existia. Movimentos, por exemplo, para que as pessoas se sentissem melhor e encontrassem uma harmonia entre o corpo e a natureza. 

Nesse texto partimos de um recorte bem específico de uma dança que nasceu nos anos 1930 na Alemanha e que reverberou e reverbera pelo mundo afora até os nossos dias, que é a Dança Teatral ou, em alemão, Tanztheater. Esteticamente a Dança Teatral, que chega à contemporaneidade, descende das inter-relações entre: as pesquisas sobre fundamentos e análise do movimento, que Rudolf von Laban (1879-1958) estava desenvolvendo, as atividades coreográficas e pedagógicas que a protagonista da Dança de Expressão alemã Mary Wigman (1886-1973) pesquisava, e também das atividades pedagógicas e coreográficas de Kurt Jooss (1901-1979) na Folkwang Hochschule, escola de vanguarda para as artes, localizada na cidade de Essen/Alemanha. 

Jooss desejava criar uma forma de arte que conseguisse englobar as exigências do teatro e, esta forma de arte, para ele só poderia ser dançada

Jooss desejava criar uma forma de arte que conseguisse englobar as exigências do teatro e, esta forma de arte, para ele só poderia ser dançada. Seria uma síntese do balé clássico, teria um novo texto, seria uma dança com a capacidade de expressar todas as formas do drama.

Na sequência, esta dança com elementos do teatro que estava efervescendo na Alemanha, produz coreografias icônicas como A mesa verde (1932) do próprio Jooss, que na sua dramaturgia prevê uma nova guerra, e é apresentada nos quatro cantos do mundo, até o movimento nazista alemão (NSDAP) pedir que Jooss dispensasse seus bailarinos judeus e trocasse a música composta especialmente para obra por Fritz A. Cohen (1904-1967), também judeu. Jooss imigra em 1933 com sua trupe para a Inglaterra e funda uma nova escola em Dartington Hall, onde permanece por um longo período, subvencionado por mecenas ingleses.

No final dos anos 1947 e ao longo dos anos 1950, as aulas de dança reiniciam e os teatros retomam suas atividades. Como alguns bailarinos e coreógrafos haviam se exilado em países das Américas do Sul, Central e do Norte, a intenção da Dança Teatral começa a reverberar. 

Entre os anos 1960 e 1980, a Dança Teatral recebe influências da dança moderna americana, já que algumas das futuras mais significativas coreógrafas, que têm seu nome ligado ao Tanztheater, estudaram e trabalharam em Nova York. Entre elas podemos citar Pina Bausch (1940-2009) e Susanne Linke (1944), artistas que inclusive estiveram em São Paulo diversas vezes apresentando peças de seu repertório, entre os anos 1980 e 2018.

Uma dança com muita personalidade

Em relação a sua estrutura, pode-se dizer que a Dança Teatral possui várias faces e que a personalidade de cada criador, suas histórias e vivências pessoais, irá caracterizar e imprimir a leveza e o peso de suas respectivas obras. Encontraremos em algumas obras de Dança Teatral gestos associados com os gestos do cotidiano das pessoas que habitam diferentes lugares do mundo. Determinadas produções são bastante econômicas, vê-se apenas o intérprete, seu corpo, uma trilha sonora, a iluminação e um figurino simples. 

Outros criadores compõem obras com efeitos mirabolantes, objetos que ocupam todo o palco ou cenários com elementos reais da natureza, como: água, terra, flores, grama, entre outros. E, ainda, projeções de filmes, música ao vivo e muitos outros subsídios. 

Existem, ainda, elementos que podem ser considerados como elementos de uso em comum, como se fossem regras que os coreógrafos que trabalham com Dança Teatral seguem. Por exemplo, a não utilização de elementos do balé clássico na sua forma original; mesmo que encontremos uma personagem que venha a dançar com sapatilhas de ponta, isso será em um contexto diferente do que se utilizaria no balé clássico.

Às vezes, certas ações ou partituras coreográficas se repetem, como estrutura na cena, mas mudam a intensidade, o número de vezes, ou a quantidade de bailarinos que as realizam.

A palavra cantada ou falada começa a ser experimentada na metade da década de 1970, aumentando assim as possibilidades de expressão.

A palavra cantada ou falada começa a ser experimentada na metade da década de 1970, aumentando assim as possibilidades de expressão. E, na década seguinte, alguns coreógrafos, sempre buscando novas experimentações, começam a se utilizar de texto de teatro, frases, ou pequenas histórias faladas pelos intérpretes, como mais um partner para a dança.

As músicas encontradas nas obras de Dança Teatral podem ser consideradas um elemento muito livre, e elas respeitam o desejo e gosto individual de cada coreógrafo abrangendo do clássico até o silêncio.

O bailarino-intérprete-criador tem a palavra

Os bailarinos sempre foram uma grande inspiração para as ideias dos coreógrafos, e a intensidade e qualidade dos seus movimentos concretizavam essas ideias. 

Contudo, tradicionalmente, os bailarinos cumpriam as equações corporais pensadas pelo coreógrafo. E, assim, a dança foi se desenvolvendo por séculos, com as plateias apaixonadas por determinadas coreografias de repertório, solos que eram e que são realizados e interpretados por bailarinos incríveis, de diferentes companhias, através dos tempos.

A Dança Teatral surge, então, mudando bastante a distância entre pensar a dança e executá-la corporalmente. É importante que por meio de diferentes técnicas de dança, o bailarino-intérprete-criador ao longo de sua formação e carreira, consiga lapidar as qualidades que carrega consigo, impressas no seu corpo, e sempre que solicitado, possa trazer para completar o que o coreógrafo pretende desenvolver.

Assim, questões são lançadas, pelo coreógrafo. Assuntos são discutidos, sobre o tema que está sendo trabalhado para a peça coreográfica como um todo, ou para um solo específico, que está sendo criado para aquele bailarino. 

O bailarino poderá opinar, sugerir, discordar, através de seu corpo, de seu lugar de fala. As ações e reações do corpo, inspiradas em ações do cotidiano não serão apenas uma questão de técnica. Sua dança, sua maneira de mover e sua poesia corporal serão bastante aceitas. 

O coreógrafo é alguém que guia, que olha de fora, que dirige a cena. É alguém que dialoga, que observa muito, e que aceita as reações que o corpo do bailarino vai tendo, vai sugerindo, vai propondo. O papel do coreógrafo na Dança Teatral comunga muito com a função de diretor. No final, é desejado alcançar a tríade coreógrafo-diretor-bailarino se complementando e se afinando muito bem.

Observar as relações humanas para trazer para a cena

Uma das características mais latentes, observadas nos coreógrafos-diretores que trabalham com Dança Teatral, é que eles realmente olham para os artistas com quem trabalham. Observam as pessoas, para perceber as relações humanas, e depois irão “falar”, coreografando sobre essas relações. 

Percebemos que os temas abordados por meio da Dança Teatral pelos diferentes coreógrafos, ao longo dessas quase 10 décadas, mantêm-se em sua essência sempre os mesmos. Somente a ótica, pela qual os temas são tratados, modificam-se sutilmente. Talvez, um pouco como o estado de ânimo das pessoas contemporâneas, que mesmo com todos os progressos tecnológicos ainda se emocionam com os mesmos temas: amam e sentem medo, são solitários e sentem saudades. E, no caso das pessoas de uma plateia, elas podem por um instante identificar-se com o que estão assistindo, e quem sabe poderão rir de sua solidão, ou chorar por uma cena que as remetam de volta às lembranças longínquas de sua infância. A arte abrangendo assim um papel mais social e de sensibilização dos indivíduos.

A Sagração da Primavera e alguns desdobramentos

Em 1978, Pina Bausch coreografou para a música do compositor russo Igor Stravinsky (1882-1971), a sua versão da obra emblemática A Sagração da Primavera para bailarinos do Tanztheater Wuppertal. 

As palavras-chave que poderíamos atribuir para essa peça seriam: ritual, grupo, luta entre os sexos, tensão, sacrifício/sacrificada, exaustão. Não vemos essas palavras cristalizadas, ao longo da obra, mas vemos a transformação delas na movimentação realizada pelos integrantes do grupo, dentro de uma música pulsante, arrebatadora, e que parece reger todas as ações vistas em cena. 

Música e coreografia são poderosas, e a cada frase coreográfica, totalmente em acordo com a música, vemos movimentos cheios de intenção e qualidade técnica.  Como único aparato cênico encontra-se o palco coberto por uma camada de terra, que remete a um lugar arcaico, ancestral, sem com isso permitir identificar um período definido. A terra influencia diretamente a movimentação dos bailarinos, dificulta as suas ações, adere aos vestidos das mulheres no desenrolar da peça, aos torsos nus dos bailarinos, nos rostos e nos cabelos, misturada pelo suor dos corpos dos intérpretes.

Esta obra está no repertório do Tanztheater Wuppertal-Pina Bausch há exatamente 46 anos. Já foi dançada aos quatro cantos do mundo, inclusive foi apresentada no Brasil em mais de uma oportunidade. Companhias de diferentes teatros europeus como a Ópera de Paris ou a Ópera de Berlim já remontaram a versão coreografada por Pina Bausch, obra que pode ser considerada um clássico da dança moderna.

Em 2019, aconteceu um projeto muito arrojado quando a Fundação Pina Bausch/Wuppertal convidou a École des Sables/Senegal para realizar a montagem da Sagração da Primavera para 36 bailarinos de 14 países africanos

Contudo, em 2019, aconteceu um projeto muito arrojado quando a Fundação Pina Bausch/Wuppertal convidou a École des Sables/Senegal para realizar a montagem da Sagração da Primavera para 36 bailarinos de 14 países africanos, para estrear em 2020.  

Com a pandemia do Covid -19 a estreia presencial, foi adiada por dois anos. No entanto, a Fundação liberou virtualmente durante um período, o ensaio geral que o grupo realizou, e foi filmado ao ar livre, na praia de Toubab Dialaw, no Senegal. Nesta filmagem o elenco dança na areia, tendo o mar ao fundo e a iluminação natural do entardecer.  

Uma experiência, para todos que tiveram a oportunidade de assistir, mesmo que virtualmente, muito diferente do que já havia sido fruído anteriormente através dessa peça. 

Ao longo dos anos, desde sua estreia em 1978, A Sagração da Primavera, de Pina Bausch segue sendo encenada em diferentes eventos de dança, e agora também pelo Ensemble integrado por bailarinos africanos.

Reverberações: Danças entre Brasil-Alemanha - 2023

A relação entre Brasil e Alemanha, através da Dança Teatral, vem acontecendo há muitos anos. Especialmente a partir dos anos 1980, companhias dirigidas por Pina Bausch, Susanne Linke, Christine Brunel (1951-2017), e Henrietta Horn (1968), estiveram em solo brasileiro apresentando os seus trabalhos, e também ministrando oficinas, com o apoio do Instituto Goethe. 

Além das coreógrafas já mencionadas, listamos nomes de outros artistas  que também se relacionam com a Dança Teatral em algum momento de suas carreiras, e que apresentaram os seus trabalhos ou coordenaram projetos em diferentes cidades brasileiras, como é o caso de Mark Sieczkarek (1962), Regina Advento (1965), Raimund Hoghe (1949-2021), e Ben J. Riepe (1979), só para citar alguns.  

Assim podemos concluir que a Dança Teatral tem sido uma modalidade de dança que continua interessando as novas gerações de estudantes e pesquisadores brasileiros. 

Assim podemos concluir que a Dança Teatral tem sido uma modalidade de dança que continua interessando as novas gerações de estudantes e pesquisadores brasileiros. 

Em 2023 através de uma parceria entre o Núcleo Dédalos (@nucleodedalos) de Piracicaba/SP e a São Paulo Escola de Dança, nasceu a ideia de um projeto para apresentar alguns artistas brasileiros, que vivem e atuam na Alemanha há mais de duas décadas, para o público. Os convidados, que vieram contar um pouco sobre as suas experiências, nesta versão virtual do projeto, estudaram na Folkwang Hochschule de Essen, ou dançaram nas companhias de Pina Bausch ou Susanne Linke.

O primeiro a contar a sua história foi Rodolpho Leoni (1963), natural de Campo Grande /Mato Grosso do Sul. Chegou à Essen em 1987, onde estudou dança, coreografou, e foi professor de dança. Desde 2008 é o diretor do FTS-Folkwang Tanzstudio, a companhia fundada por Kurt Jooss em 1928. 

Luiza Braz Batista (1989), natural de Vitória/Espírito Santo, depois de dançar com a Cia. 1º Ato de Belo Horizonte/MG, partiu para Essen, onde concluiu a sua formação como bailarina na escola Folkwang. Atualmente é bailarina solista na cena independente alemã. 

Ruth Amarante (1963), natural do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que estudava dança no Brasil, formou se em medicina. Depois disso foi para a escola Folkwang para estudar dança. Ao final do curso, a convite de Pina Bausch, passou a integrar o Tanztheater Wuppertal ao longo de três décadas. Atualmente Amarante retomou seus estudos de medicina na Alemanha. 
E para finalizar Magali Sander Feet, natural de Bagé no Rio Grande do Sul, estudou dança e Ciências da Comunicação no Brasil. Rumou para Essen onde concluiu o curso de dança na escola Folkwang. Em 2000, mudou-se para a cidade de Bremen onde integrou o Tanztheater Bremen até 2012, sob a direção de Susanne Linke e Urs Dietrich.

O “Reverberações: Danças entre Brasil-Alemanha” foi de certa maneira um encontro, histórico, já que os artistas nunca haviam estado juntos participando de um mesmo evento. Os relatos e depoimentos dos quatro artistas que fizeram a “travessia Brasil/Alemanha” foram muito intensos, e cheios de camadas de diferentes momentos vivenciados, por cada um deles. Através das memorias individuais e de suas experiências únicas, cada um, a sua maneira, relatou que o motivo que os moveu a ir para a Alemanha foi o desejo de se colocar em trânsito, conhecer e se especializar em Dança Teatral. 

As narrativas dos artistas tocaram e emocionaram a plateia de estudantes da SPED, de professores e estudantes de outras instituições, artistas e interessados em geral, que estiveram muito atentos, ao longo dos 150 minutos de encontro. A mediação foi feita por Adriana Celi da SPED e por convidados.

Não é sobre arte ou sobre ter habilidade. É sobre a vida e o encontrar uma linguagem para a vida. E é sobre o tempo e sempre o tempo, e sobre o que não é arte, mas talvez possa vir a ser 

São de Pina Bausch (2016) as palavras que escolhemos para arrematar, e de certa maneira, amalgamar tudo o que foi escrito até aqui:

Não é sobre arte ou sobre ter habilidade. É sobre a vida e o encontrar uma linguagem para a vida. E é sobre o tempo e sempre o tempo, e sobre o que não é arte, mas talvez possa vir a ser 
(Pina Bausch; Pina Bausch Foundation, 2016, p. 255.)

 


AGENDA

O mês de ABRIL, que é o mês da dança, oferece muitas opções de espetáculos pela cidade de São Paulo. Deixo a seguir algumas sugestões:

# Cia Gumboot Dance Brasil - Elevados. O espetáculo reflete sobre a história e a cultura das comunidades pretas, que são vistas como seres elevados em diversos aspectos. Em cartaz entre 19/4 e 28/4, no Sesc Vila Mariana

# Arrastão de Solos – Dramaturgias paralelas – Marcos Sobrini, Simone Mello, Luciana Hoppe, Jussara Miller – Em cartaz entre 18/4 e 27/4, na Oficina Cultural Oswald de Andrade.

# O outro corpo: Desdobramentos – iN SAiO Cia. de Arte com Claudia Palma e Instante com Marcus Moreno. Dia 24/4 no CRD- Centro de Referência da Dança/SP.

# Mercúrio – Irupé Sarmiento, Luiz Oliveira, com coreografia de Henrique Rodovalho. Dia 26/4, no CRD- Centro de Referência da Dança/SP e 28/4, no Centro Cultural Vila Formosa /SP.

# Corpos Velhos Para Que Servem? - Direção: Luis Arrieta, Elenco: Célia Gouveia, Décio Otero, Iracity Cardoso, Luis Arrieta, Lumena Macedo, Marika Gidali, Monica Mion, Neyde Rossi, Yoko Okada. Dias 26, 27 e 28/4, no CCSP-Centro Cultural São Paulo.

 A Sagração de Pina Bausch, recriada com dançarinos de toda a África (divulgação, Pina Bausch Foundation, École des Sables – Sadler’s Wells)
 ‘A Sagração’ de Pina Bausch, recriada com dançarinos de toda a África (divulgação, Pina Bausch Foundation, École des Sables – Sadler’s Wells)

 

Luiza Braz, bailarina na escola Folkwang, atualmente é solista na cena independente alemã (divulgação, Nanah D'Luize)
Luiza Braz, bailarina na escola Folkwang, atualmente é solista na cena independente alemã (divulgação, Nanah D'Luize)

 

‘Gumboot’, com direção de Rubens Oliveira em cartaz este mês (divulgação, José de Holanda)
‘Gumboot’, com direção de Rubens Oliveira em cartaz este mês (divulgação, José de Holanda)

 

Cena do espetáculo ‘Corpos Velhos’ (divulgação, Silvia Machado)
Cena do espetáculo ‘Corpos Velhos’ (divulgação, Silvia Machado)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.