O poder da iluminação na dança

por Redação CONCERTO 15/05/2025

Por Katia Calsavara [Katia Calsavara é jornalista, atriz e produtora cultural. Estudou 27 anos de dança com a equipe do Ballet Marly Zavar, em São Paulo. Como atriz, integrou o elenco da companhia Os Satyros durante oito anos. Atualmente, trabalha em projetos independentes, como a dança-teatro “Até quando você cabe em mim?”. Escreveu reportagens sobre dança para a Folha de S.Paulo por mais de 15 anos. É editora na Revista Qualé.]

Assim como a música, o cenário e o figurino, a iluminação de um espetáculo não é apenas um detalhe. Especialmente na dança, a luz é uma importante ferramenta que participa da dramaturgia visual e orienta o olhar do público. Mais do que isso, reforça camadas, constrói atmosferas, compõe estruturas que dão profundidade, evidencia intimidades, contorna ou explora os detalhes de um corpo. 

Nesse sentido, o light designer, profissional responsável pelo desenho de luz em um espetáculo de artes cênicas, é um dos profissionais mais importantes da ficha técnica. A escolha dele acrescenta potenciais e ajuda os criativos no desenvolvimento completo de uma obra.

Vivemos um momento interessante dessa arte no Brasil, com mais profissionais qualificados e novos cursos que oferecem a chance de um mergulho maior na parte técnica e teórica. Mas nem sempre foi assim. Muitos profissionais que hoje atuam com excelência no mercado foram ou são autodidatas e/ou se especializaram movidos por um interesse genuíno.

É o caso da ex-bailarina Rossana Boccia, que hoje se dedica ao desenho de luz. Durante dez anos, ela foi bailarina da Cisne Negro Cia de Dança e conta que sempre se interessou pelas questões técnicas. “Em uma conversa com Hulda Bittencourt [1934-2021, fundadora e na época diretora da cia], sobre outras possibilidades de trabalho além da companhia, ela perguntou: ‘E luz? Você parece gostar!’. E essa luz se acendeu. Em 2013 fui fazer um curso técnico em iluminação e estudar um pouco de elétrica”, conta Rossana. A proximidade com os técnicos dos teatros também a ajudou a abrir portas em estágios e encontrar futuras oportunidades de trabalho. Mais de uma década depois dessa conversa, ela acredita que a iluminação é a grande mágica de um espetáculo, e celebra a presença de cada vez mais mulheres nesse mercado. Entre seus trabalhos em dança estão “Quebrakovsky” e “Cenas a 37”, de Alex Soares, “Take a Deep Breath” e “Estudos para Quimera”, de Jorge Garcia. 

Espetáculo Take a Deep Breath, de Jorge Garcia, com iluminação de Rossana Boccia (divulgação, Leandro Moraes)
Espetáculo Take a Deep Breath, de Jorge Garcia, com iluminação de Rossana Boccia (divulgação, Leandro Moraes)

Outra profissional que brilha na luz de espetáculos de dança é Aline Santini, que já tinha diversas peças de teatro em seu currículo quando começou a ser chamada para realizar obras de dança. “Posso dizer que a dança gostou antes de mim do que eu dela. Mas hoje temos um amor completamente correspondido”, brinca. 

Antes de falar sobre o processo criativo da light designer paulistana, responsável pela luz de “Um jeito de corpo”, de Morena Nascimento, é importante lembrar que a parceria com o coreógrafo é determinante para o trabalho. Há muitos profissionais que já apresentam ao iluminador um caminho mais bem definido, enquanto outros buscam a sintonia a partir de testes ao estilo “aqui quero algo mais sombrio, ali vamos destacar mais o espaço de determinado bailarino” e, como em um balé de luzes, constroem ambiências com sensibilidade, técnica e, por que não dizer, bons equipamentos. Em alguns casos, sofrem com a falta de recursos dos teatros e precisam contar com locação de implementos ou improvisar com uma determinada quantidade de holofotes, por exemplo. Resumindo, nem sempre trabalham em condições ideais e tais quais imaginadas no original. 

Há também inúmeros diretores e coreógrafos que abdicam de um cenário para criar ambientações apenas com a luz e o movimento dos corpos. “Penso que com a luz crio lugares, então humanizo os espaços tornando-os lugares. Muitas vezes, eles não são físicos, são sugestões ou sensações. Nesse sentido, a luz tem um papel maior em ajudar a contar uma história. A luz edita o olhar”, reflete Aline. Atualmente, ela está envolvida no processo de duas obras inéditas para o Balé da Cidade de São Paulo, “Boca abissal”, de Rafaela Sahyoun, e “Tão carne quanto pedra”, de Michelle Moura, que estreiam em 23 de maio, no Theatro Municipal de São Paulo. “Criar luz para dança é se lançar completamente livre e no escuro e, aos poucos, a obra que vai se consolidando em sala de ensaio mostra os caminhos possíveis”.

Fôlego, de Rafaela Sahyoun, com iluminação de Aline Santini (divulgação, Stig de Lavor)
Fôlego, de Rafaela Sahyoun, com iluminação de Aline Santini (divulgação, Stig de Lavor)

Luca Baldovino, superintendente de produção da São Paulo Cia de Dança, que está na companhia desde sua fundação, em 2008, é responsável pela contratação e acertos finais com os criadores e acompanha de perto os desafios da iluminação de cada obra. “A luz depende muito do estilo do coreógrafo. Você tem aqueles que dão mais valor à parte visual do palco como um todo e os que trabalham mais com a dramaturgia e interpretação dos bailarinos, depende muito do resultado que ele pretende”, comenta. Ele relembra o caso do coreógrafo canadense Édouard Lock, conhecido por suas inovações e movimentos precisos e velozes na dança, que montou para a SPCD, as obras “The Seasons” (2014) e “Trick Cell Play” (2019). “Em 50 minutos de obra, são mais de seiscentas cenas diferentes de luz, aproximadamente. As mudanças na iluminação, assim como os movimentos dos bailarinos, são muito rápidos”, conta Baldovino. 

Em “The Seasons”, por exemplo, foram utilizados 21 moving lights, equipamentos que, como o nome sugere, permitem um movimento automático da luz em diferentes direções. Para o bom funcionamento da estratégia do coreógrafo, foi necessária a locação de um outro teatro com três semanas de antecedência da estreia, apenas para o ensaio dos efeitos de luz – para se ter ideia, o tempo de entrada no teatro e os ajustes de afinação e montagem da luz não costumam exceder mais de cinco dias, quando isso é possível.

No caso dos balés de repertório, também muito encenados pela Companhia, Baldovino explica que essa montagem de luz também é mais tradicional. “A luz tem o papel de mostrar mais os movimentos e definir a questão temporal, como manhã, tarde, noite, a narrativa é mais bem definida. Os figurinos e cenários também ajudam a construir espaços e situações”, conta o produtor.

Sueli Matsuzaki, coordenadora de iluminação do Balé da Cidade de São Paulo, cuja casa é o Theatro Municipal, gerencia a luz dos espetáculos há pelo menos 20 anos. Cabe a ela não só a reprodução das obras após a entrega do projeto dos iluminadores, como também a documentação de cada coreografia, que fará parte do acervo do teatro. “Também faço a intermediação entre a nossa produção e os criadores, para que consigam obter o melhor resultado em suas ideias”, conta Sueli, que ressalta: “É sempre bom quando há um diálogo com o coreógrafo para sabermos qual linha de pensamento devemos seguir.”

Sueli também comenta que os desafios são constantes. Para o espetáculo “Titã”, do diretor italiano Stefano Poda, ela estudou minuciosamente uma partitura com desenhos criados pelo coreógrafo e decorou a Sinfonia nº 1, de Gustav Mahler (1860-1911), para saber exatamente onde estava a melodia e a hora certa de disparar a luz. “Foi assustador, porém encantador”, completa a veterana, que adora observar a natureza e a luminosidade de cada dia. “Faço pinturas com a luz.”

Criatividade e superação

Depois de uma trajetória de mais de 10 anos como bailarino profissional, Alex Soares, investiu na carreira como coreógrafo e atualmente dirige a Cia. Jovem de Dança de Jundiaí, onde continua seus passos como criador. Soares é um exemplo de artista inquieto que costuma valorizar a luz em seus trabalhos. “A iluminação é muito importante para um espetáculo de dança pois, assim como outros elementos, ajuda a criar climas, texturas, demarcar cenas. É através do desenho de luz que entendemos as nuances de uma peça coreográfica.”

O ex-bailarino, que trabalhou ainda como coreógrafo em outras companhias do Brasil (como São Paulo Cia. de Dança e BCSP) e do exterior (como Noord Nederlandse Dans e Northwest Dance Project), é formado em cinema e costuma utilizar com frequência as projeções de vídeo em seus espetáculos. “Acredito que este seja um bom exemplo de como a luz pode ajudar ou atrapalhar uma composição cênica, pois ela tem que ser muito bem equacionada para poder dialogar com imagens projetadas no palco junto com os bailarinos”, acredita. Entre as peças nas quais utilizou o recurso está “Devolve 2 horas da minha vida”, que estreou em sua própria companhia, o Projeto Mov_ola.

Se por um lado temos acompanhado soluções criativas e profissionais cada vez mais qualificados, por outro ainda faltam melhores condições de trabalho em geral. “Grande parte dos profissionais trabalha por projeto, sem vínculos formais, o que impacta diretamente a estabilidade dos artistas. Soma-se a isso o acúmulo de funções, prática comum devido à escassez de recursos. É fundamental estabelecer limites e reconhecer o valor de cada função — designer de luz, programador, operador, técnico de iluminação e carregador —, todos são fundamentais para que o processo criativo se desenvolva de maneira fluida e profissional”, afirma Marcel Rodrigues, que atua como iluminador na Raça Cia. de Dança, de São Paulo, desde 2014, e também em companhias e grupos de todo o Brasil.

Rodrigues é filho de Roseli Rodrigues (1955-2010), um dos grandes nomes do jazz dance no Brasil. Nos bastidores desde criança, ele conta que essa convivência moldou sua percepção estética e sua compreensão (profunda) do ambiente de palco e bastidores. “Venho desenvolvendo um trabalho que busca integrar técnica e poesia, criando atmosferas que dialogam com o corpo, a música e a dramaturgia de cada espetáculo”, afirma.

Transcender, com iluminação de Marcel Rodrigues (divulgação, acervo pessoal)
Transcender, com iluminação de Marcel Rodrigues (divulgação, acervo pessoal)

Em 2016, ele criou o Coletivo Proscênio, inicialmente voltado à gestão técnica de espetáculos de dança acadêmica. Com o tempo, expandiu a atuação para teatro, teatro musical, shows, exposições e instalações artísticas. “Um dos grandes desafios que enfrentamos foi a escassez de profissionais técnicos qualificados, o que nos levou a investir também em formação. Assim nasceu o projeto Centro de Formação, em parceria com o Armazém da Luz, com o objetivo de oferecer ensino técnico acessível e de qualidade para quem deseja se especializar em iluminação cênica.”

Para ele, que já trabalhou com Wagner Freire, André Boll, Fabricio Fonseca, Guilherme Paterno, Nicolas Caratori, Diego Rocha, Aline Santini, entre outros, o fortalecimento da formação, a valorização das equipes e a descentralização do acesso à tecnologia são caminhos fundamentais para consolidar esse setor. “Com mais estrutura e reconhecimento, a iluminação cênica pode alcançar um patamar ainda mais relevante dentro do cenário artístico nacional”, finaliza.


Alguns espetáculos em maio para você dar uma “espiada na luz”:

“Boca abissal”, de Rafaela Sahyon e “Tão carne quanto pedra”, de Michelle Moura, com o Balé da Cidade de São Paulo
No Theatro Municipal de São Paulo, a partir de 23/5

“O lago dos cisnes”, com Mayara Magri e Victor Caixeta, com o Balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro 
No Theatro Municipal do Rio de Janeiro, desde 14/5

“Não te abandono mais, morro contigo”, com a Cia. Carne Agonizante
No Kasulo Espaço de Arte (SP), de 2 a 25/5

“Cão sem Plumas”, com a Companhia de Dança Deborah Colker
No Teatro Sérgio Cardoso (SP), de 12 a 21/5

Iluminação de Aline Santini do espetáculo ‘Um jeito de corpo’, de Morena Nascimento (divulgação, Stig de Lavor)
Iluminação de Aline Santini do espetáculo Um jeito de corpo, de Morena Nascimento (divulgação, Stig de Lavor)

 

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