Acervo CONCERTO: A ‘Sinfonia nº 3’ de Gustav Mahler

por Redação CONCERTO 19/06/2025

Texto de Leonardo Martinelli publicado na edição de maio de 2014 da Revista CONCERTO

Quando, em março de 1827, Ludwig van Beethoven morreu, ele deixou para a humanidade um verdadeiro tesouro musical. A joia desta coroa é, sem dúvida, o conjunto de suas nove sinfonias, que desde então foi tomado como referência por sucessivas gerações de compositores, ora como objeto de reverência, ora como fonte de inspiração. Tal como Beethoven, Gustav Mahler (1860-1911) também se destaca por sua criação sinfônica, e como qualquer compositor pós-beethoveniano, também ele não escapou da influência do mestre de Bonn. 

Entretanto, Mahler pertence ao seleto grupo daqueles que tomaram a música de Beethoven como referência a ser transcendida; e, talvez, ele seja um dos poucos que de fato tenha sido bem-sucedido nesta tarefa, superando o alcance daquela influência, embora jamais a negando. Por isso mesmo, talvez tecer certos contrapontos e semelhanças entre esses dois monumentos sinfônicos seja mesmo inevitável. Além de ambos terem composto nove sinfonias, e cada qual empreendendo no gênero transformações tão marcantes quanto peculiares, chama a atenção o fato de a terceira sinfonia de cada um se caracterizar como verdadeiro divisor de águas na trajetória de suas respectivas carreiras. Beethoven só passou a ser “Beethoven” a partir da Eroica; da mesma forma, Mahler inicia sua maturidade estilística com sua Sinfonia nº 3

A obra foi elaborada entre os anos de 1893 e 1896, quando Mahler já havia consolidado sua reputação como regente de ópera, tendo dirigido a Ópera Real de Budapeste, na Hungria, e a Ópera Estatal de Hamburgo, na Alemanha. Foi nesta mesma época que se ouviu pela primeira vez suas duas sinfonias iniciais. Afogado em tanto serviço, o compositor esperava as férias de verão para se dedicar à composição. E foi justamente com a Sinfonia nº 3 que ele deu início à vida de Sommerkomponist (ou “compositor de veraneio”), quando então se trancafiava por horas a fio em uma pequena cabana que havia mandado construir junto à beira do lago Attersee, na Áustria.

A obra faz parte do chamado “Período Wunderhorn”, que inclui as quatro primeiras sinfonias de Mahler, pelo fato de haver nelas uma presença marcante do cancioneiro popular, em especial do ciclo de canções Des Knaben Wunderhorn (A trompa mágica do menino). A utilização da canção Ablösung im Sommer, extraída do Wunderhorn, como material temático de base para o terceiro movimento, é um dos elementos que reforçam esta ideia. 

Em sua terceira obra sinfônica, Mahler manteve a tendência de ampliação formal que já havia delineado em suas duas obras anteriores. Ao final do processo, acabou por compor uma das maiores sinfonias da história – ao todo são seis movimentos. O primeiro deles é praticamente concebido como uma sinfonia à parte e, dependendo da interpretação do regente, pode durar mais de 40 minutos.

Em diversos momentos, ao longo do processo de criação, Mahler expressou uma espécie de roteiro que o orientou em sua composição, que, no entanto, jamais veio oficialmente a público como “música programática” – 1) Pan acorda, o verão chega; 2) O que me dizem as flores do campo; 3) O que me dizem os animais da floresta; 4) O que me dizem os homens; 5) O que me dizem os anjos; 6) O que me diz o amor. 

Tal como na sinfonia anterior, Ressurreição, aqui também Mahler incorpora a voz humana ao efetivo orquestral. No quarto movimento, um lindo solo de mezzo soprano entoa versos do Nachtwandlerlied, extraídos de Assim falou Zaratustra, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (e que, na mesma época, inspirava Richard Strauss a compor seu famoso poema sinfônico). Já no movimento seguinte, as forças corais (incluso um grupo infantil) se encarregam de cantar versos do Des Knaben Wunderhorn

Originalmente, a sinfonia previa ainda um sétimo movimento, no qual são desenvolvidos diversos elementos apresentados no quinto. No entanto, o movimento foi realocado para encerrar a Sinfonia nº 4, o que reforça ainda mais a ideia de organicidade que une as quatro primeiras sinfonias de Mahler.

Apesar de podermos entendê-las e ouvi-las como um conjunto, é clara a singularidade conceitual e técnica que caracteriza a Sinfonia nº 3, na qual é possível vislumbrar muito do maravilhoso e dramático universo sonoro que Mahler desbravaria em suas sinfonias seguintes.

Acervo CONCERTO

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