Livro de Eduardo Giannetti e gravação de André Mehmari e Emmanuele Baldini nos incitam a compartilhar totalmente a grandeza não só da Chacona da Partita nº 2, mas de toda a obra de Johann Sebastian Bach
“Em uma única pauta, para um pequeno instrumento, o homem escreve um mundo inteiro de pensamentos profundos e sentimentos poderosos. Se eu imaginasse que poderia ter criado, ou até mesmo concebido, a peça, tenho certeza de que o excesso de excitação e a experiência avassaladora me teriam enlouquecido. Se não se tem o melhor violinista por perto, então é um prazer imenso simplesmente ouvir o som mentalmente.”
O autor desta frase é Johannes Brahms, numa carta a Clara Schumann a respeito da Chacona da Partita nº 2 BWV 1004 para violino solo de Bach. Esta chacona já foi transposta, arranjada e reinventada de mil e uma maneiras nos últimos três séculos (ela foi composta 305 anos atrás).
Estas palavras do primeiro grande compositor do século XIX a resgatar o passado, recente (como sinfonias de Schubert, que permaneciam inéditas) e também remoto (o barroco) me conduziram ao livro Imortalidades, de Eduardo Giannetti. É seu décimo primeiro livro. E convida a uma leitura aleatória: compõe-se de pouco mais de 400 páginas com aforismos e pensatas curtas, entre 5, 10 linhas até uma ou duas páginas.
Pois foi assim que topei, na página 221, com este título: “Partita II, BWV 1004 – Religião: religare e relegere”. Ele começa contando que “ouvir concentradamente a Partita II de Bach constitui, para mim, a experiência de presente absoluto por excelência: o restabelecimento do vínculo sagrado com o universo (religare) e a retomada de uma síntese primeira, anterior ao jugo do tempo e à cisão das formas repartidas (relegere)”. Explicado o título, afirma: “Acima de tudo que conheço, reverencio ou possa conceber, a pureza e a perfeição austera desses sons traduzem, aos meus ouvidos, a intuição-vislumbre do sublime. O que pode qualquer metafísica ou religião instituída, calcada no miasma do verbo, diante da verdade infinita – a espirirtualidade em estado puro – que emana da música de Bach?”.
No restante do texto dedicado à Chacona, Giannetti conta como a ouviu pela primeira vez aos 15 anos e de como ela o acompanha desde então como obra-prima suprema. Conclui que “os pouco mais de 25 minutos da Partita II bastam para escancarar o que há de errado com a ideia de contar e medir as horas e minutos, como se a realidade do tempo pudesse ser rendida e algemada à disciplina dos relógios. O intervalo definido por suas notas de fecho e abertura demarcam nada menos que a eternidade”.
De fato. Esta sensação que a audição de sua música provoca em Giannetti e nós todos, no século XXI, remonta a uma escuta “romântica”. Ela foi instaurada desde as primeiras décadas do século XIX, quando E.T.A. Hoffmann escreveu a famosa crítica da Quinta sinfonia de Beethoven, em que declarou que sua música não é deste mundo. Entre todas as artes, a música é aquela que, segundo Hoffmann, irá incorporar esse princípio romântico da maneira mais pura, revelando ao homem um reino desconhecido, que nada tem a ver com o mundo dos sentidos, um reino do inefável, do incomensurável, do infinito.
A escuta de Giannetti é, portanto, romântica. Mas não só a dele. A de todos nós, que hoje ouvimos a chamada grande música do passado experimentam. Sem dúvida, foi este sentimento que levou, em 2003, a musicóloga alemã Helga Thoene, da Universidade de Düsseldorf, deduzir que a Chacona é na verdade um réquiem composto para chorar a morte de sua primeira mulher, Maria Barbara. A história toda é esta. No início do verão de 1720, Johann Sebastian Bach viajou, na condição de mestre de capela de Anhalt-Cöthen, para Carlsbad em companhia do príncipe Leopold. Lá permaneceram durante três meses e, no retorno a casa, soube que sua primeira mulher, Maria Barbara, havia morrido e já tinha sido enterrada.
Abalado pela dor da perda da mulher que lhe dera sete filhos, Bach encerrou a Partita nº 2 em ré menor para violino solo BWV 1004 com a emocionada e gigantesca Chacona que se transformou numa das mais originais obras-primas atemporais. Segundo Helga Thoene, ela é uma elegia ou um réquiem instrumental para violino solo em memória de Maria Barbara, com uma série de alusões cifradas a corais de suas cantatas – corais cujas palavras remetem à morte, à passagem da vida terrena para a vida eterna.
A tese faz sentido, dada a grandiosidade desmesurada da Chacona. Bach usou um material musical antigo de 120 anos, da passagem do Renascimento para o barroco quando escreveu um baixo baseado num tetracorde descendente de ré menor (ré-dó-si bemol-lá). A Chacona compõe um gigantesco painel de variações a partir de um tema de quatro compassos. Cada uma das variações transforma o tema; elas surgem aos pares, sempre em torno das tonalidades ré maior-ré menor-ré maior. Usam e abusam dos chamados estilos francês e italiano justapostos numa variedade quase infinita de diminuições, síncopes, ritmos pontuados e riquíssima ornamentação. Um formidável triunfo que levou Carpeaux a chamar Bach de “o deus da música”.
Não sei se Eduardo Giannetti conhece o álbum Conversas com Bach (2020), no qual André Mehmari e Emmanuele Baldini fazem de três versões diferentes da Chacona – violino solo, piano solo e cravo solo – os pilares de que sustentam e inspiram seis deliciosas “conversas” com o universo bachiano: ária brasileira, reza, scherzo digitale, alla siciliana, introduzione e animato.
Tenho certeza de que este trio – Giannetti-Mehmari-Baldini – nos abre portas diferentes mas igualmente capazes de nos incitar a compartilhar totalmente a grandeza não só da Chacona, mas de toda a obra de Johann Sebastian Bach.
![Johann Sebastian Bach [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-Johann_Sebastian_Bach.jpg)
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.