#ÓperaHoje: “O racismo dói, cega, deixa marcas”

por Redação CONCERTO 19/10/2020

Impera no Brasil um racismo estrutural que se evidencia em toda a análise estatística. Mais de 130 anos após a abolição da escravidão, com uma população majoritariamente negra, essas camadas sociais aparecem em desvantagem em todas as questões, de nível salarial a taxa de homicídios, de evasão escolar a oportunidades de emprego. Refletindo sobre exemplos de nossa época no Brasil e no mundo, uma mesa do webinário #ÓperaHoje, Diversidade Racial na Ópera, buscou, na tarde de sábado, dia 17, pensar formas de enfrentar essa desigualdade no meio cultural da música clássica e da ópera.

A mediação foi da soprano Edna D’Oliveira e participaram Felipe Brito, tenor, Baba Ẹgbẹ dó Ile Maroketu Àṣẹ Ọba, jornalista, doutorando no programa de Pós Graduação em Humanidades Direitos e Outras Legitimidades do Diversitas/USP, idealizador da Ocupação Cultural Jeholu, movimento cultural, político e antirracista que promove debates e atividades culturais com protagonismo negro; o barítono Michel de Souza, Mestre com distinção pelo Royal Conservatoire of Scotland; Oswaldo Faustino, jornalista, autor de 12 livros infantis e juvenis pautados na história e na cultura afro-brasileiras, conselheiro do Museu Afro Brasil, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial e da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, da OAB/SP, e Obá de Xangô; e Sarah Higino, professora, gestora e coordenadora pedagógica do trabalho “Volta Redonda Cidade da Música”.

Edna D’Oliveira abriu a mesa oferecendo um contexto histórico da participação dos negros na música clássica brasileira – para ela, “é impossível falar de diversidade sem analisar os aspectos da diáspora africana, a permanência da corte portuguesa no Brasil, a desumanização do negro”. Ela lembrou os milhões de negros sequestrados e trazidos ao país como escravos. E mostrou como passaram a estudar e realizar atividades musicais, consideradas subalternas, vista como ofício manual. “A atuação dos negros e mulatos como atores e cantores no século XVIII era vista como norma. Os mestres de música criaram companhias com negros, que tinham licença para tanto.”

A partir daí, ela lembrou a figura de Padre José Maurício Nunes Garcia, que foi organista da Capela Real – sendo substituído com a chegada ao Brasil de Marcos Portugal e de músicos europeus. “Minha reflexão se dá a partir dessa injusta mudança na prática musical: antes feita pelos negros, e que foi tirada deles com a institucionalização do racismo. A proibição de acesso a escolas criou um abismo na educação formal e na educação musical do negro, que perdeu o direito de participar da sociedade. E isso permanece nas estruturas de poder econômico, político e cultural do país até hoje.”

Sarah Higino lembrou como a performance dos negros na época colonial, nas palavras de Curt Lange, não deviam em nada ao que acontecia na Europa. E elencou quatro personagens que considera importantes na história da música brasileira. O primeiro foi o Padre José Maurício. “Um dos maiores compositores brasileiros de seu tempo, foi mestre de capela, e não damos real valor a ele. Por que? Porque era negro.” Em seguida, ela lembrou de Francisco Braga, vítima, diz, de um processo de embranquecimento, assim como Chiquinha Gonzaga. Sua lista incluiu ainda o flautista Patápio Silva. A maestrina terminou sua fala lembrando como, em concertos, é possível contar nos dedos o número de músicos negros. “Em Volta Redonda, 4.600 pessoas têm acesso à música de qualidade. O que espero é que, ao chegar em um teatro, eles possam ver em todos os naipes uma representatividade. Cabe aos projetos trabalhar por essa inclusão.” 

Oswaldo Faustino lembrou que é preciso, nas artes dramáticas, que “os autores escrevam que seus personagens devem ser vividos por intérpretes negros ou eles nunca serão chamados para papeis protagonistas”. Esse protagonismo, diz, ainda é visto como uma aberração. “Como esse ou aquele papel não é interpretado por alguém com características europeias? É o que mais ouvimos.” Ele aproveitou para lançar um desafio aos compositores. “Escrevam espetáculos de ópera, de teatro, para personagens como nós.” Faustino também lembrou dos dez valores civilizadores afro-brasileiros propostos pela professora Azoilda Loretto da Trindade. “Em cima deles há todos os conteúdos que se pode imaginar para a produção de belíssimas óperas. Nossa memória, nossa religiosidade, nossos corpos, nossa musicalidade, nossa oralidade, nossa energia vital. Tudo isso pode ser explorado artisticamente.”

“Faustino nos apresenta de maneira pulsante a ideia de coletividade que é algo que permeia a tradição africana e a tradição afro-diaspórica”, começou Felipe Brito. “Creio que qualquer mudança no cenário racial da ópera passa por isso. Milton Santos dizia que cidadania tem a ver com autonomia e consciência sobre direitos, algo que nos foi negado como população negra. Existir pretamente é uma revolução diária.” Para ele, “o palco é libertador e não pode ser o palco da opressão”.

“O racismo estrutural é da estrutura, da máquina esmagadora. Tudo o que permeia a institucionalidade está imbuído do racismo estruturante. Não é diferente no teatro de ópera. E isso faz com que as pessoas pretas não tenham sua cidadania de maneira completa. Ela é mutilada. Elas não conseguem nem mesmo acessar o mínimo conhecimento musical. Fala-se em meritocracia e em exemplos de pessoas que conseguiram algo. Mas que exemplo é esse? Exemplo de quem sofreu, carregou traumas, dor? Precisamos olhar a coletividade, nos aquilombar no espaço da ópera para podermos curar nossas feridas, porque são muitas. Quando um cantor sofre violência, muitas carreiras são silenciadas”, completou.

Michel de Souza falou de sua trajetória, da participação no Coral dos Canarinhos de Petrópolis ao atual trabalho na Europa como solista. “Não tive grandes dificuldades no Brasil, mas foi ao chegar no Reino Unido que me dei conta de algumas coisas. Aqui, onde os negros são apenas 3% da população, há um esforço muito grande na busca pela diversidade, mais do que no Brasil, onde 54% são negros. Há uma discussão muito grande sobre diversidade nas artes, na gestão, na descolonização do ensino de música.” Ele compartilhou também uma experiência pessoal: perceber que, durante um ensaio de Sonho de uma noite de verão de Britten no começo deste ano, jovens meninos negros do coro surpreenderam-se ao vê-lo, um negro, como solista. 

E como acabar com essa falta de espaço, questionou Edna. É papel apenas do estado?

“A desigualdade social é o grande vetor para manter negros nos espaços que querem nos dar. É preciso um querer fazer, como os dos projetos sociais que estão hoje alimentando de alunos as universidades, alunos que mais tarde estarão nas orquestras. É raro que alguém hoje ultrapasse a barreira. Não queremos que seja raro. Queremos que nossos jovens enxerguem sua pele preta em seus professores de música, dança, teatro”, colocou Sarah Higino.

Debate do webinar #ÓperaHoje - mesa sobre diversidade

A partir daí, Edna chamou atenção justamente para a questão da representatividade. “Quando a criança não vê, ele mesmo incorpora o racismo institucionalizado: ali eu não posso estar”, disse, secundado por Faustino. “É preciso dar acesso. Povo não gosta de música erudita? Claro que gosta. Como não gosta de algo que não conhece? Formar público: e formar público se faz por meio de identificação. É possível e necessário.”

Felipe Brito voltou à questão da meritocracia. “É importante termos heróis, mas dentro de nossa sociedade isso se dá a que custo? É importante ter o projeto social na periferia porque é lá onde os pretos estão. Mas muitas vezes esse jovem é barrado quando chega na porta dos teatros. Por que o Brasil se escandaliza quando o Magazine Luiza propõe cotas para trainees? Porque esse é o primeiro passo para ter negros subindo em direção a posições de poder.”

Michel de Souza ressaltou que a ópera não poder ser “entretenimento para gente rica”. “A ópera precisa refletir no palco o que é a população do Brasil. É preciso ações concretas. Nas academias de ópera e orquestras, a regra de medida para aprovação tem que ser diferente: meritocracia, mas também equidade. Não pode ser só virtuosismo. Se for só isso, nunca vamos atingir a diversidade.”

Felipe Brito também falou em ações. “Nas recentes manifestações do Black Lives Matter, nos Estados Unidos, brancos também foram se manifestar, colocaram seus corpos na frente dos corpos pretos para protegê-los da polícia. Quando você ouvir um maestro ou diretor sendo preconceituoso, coloque então seu corpo na frente, proteja-o, denuncie.”

A mesa acabou com um depoimento emocionado de Edna D’Oliveira, que lembrou colegas obrigados a deixar o palco. “O racismo dói, cega, deixa marcas.”

Veja abaixo o vídeo completo da mesa redonda.

#ÓperaHoje dia 17/10/2020 – Mesa 8 – Diversidade racial na ópera
Mediação: Edna D’Oliveira (MG). Convidados: Felipe Brito (SP), Michel de Souza (RJ), Oswaldo Faustino (SP) e Sarah Higino RJ)

 

Confira a cobertura especial da Temporada de Óperas on-line da Fundação Clóvis Salgado.

 

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