Nem todas as heroínas trágicas morrem pelo mesmo motivo

por João Luiz Sampaio 08/09/2025

Espetáculo da Cia. Ópera São Paulo encena últimos atos de Rigoletto, La traviata e Il trovatore, de Verdi

Trilogia verdiana, trilogia popular, trilogia romântica. O nome importa pouco, até porque não foi dado por Giuseppe Verdi, e nem ele pensou em compor um conjunto de óperas afins naqueles anos de 1850. Mas não é despropositado. Há muito em comum entre Rigoletto, La traviata e Il trovatore e é difícil não vê-las como um conjunto, até pelo significado que têm na obra do compositor.

Em todas elas, Verdi elege como protagonistas personagens que ele enxerga à margem da vida em sociedade – o bobo da corte, a família de ciganos, a cortesã. Sua famosa carta em resposta à censura e às mudanças que propunha para Rigoletto é a definição de seu credo artístico:

“Finalmente, vejo que evitaram fazer de Triboletto (que mais tarde seria batizado de Rigoletto) um feio corcunda!! Um corcunda que canta! Por que não? Será que vai causar efeito? Não sei. Mas, repito, se eu não sei, então eles, que propõem esta mudança, tampouco o sabem. Achei que seria belo retratar esse personagem extremamente deformado e ridículo mas que é, interiormente, apaixonado e cheio de amor. Escolhi o tema precisamente por causa dessas qualidades e traços originais, e se estes forem cortados, não poderei mais musicá-lo. Se alguém me disser que posso deixar minhas notas como estão para esta nova trama, responderei que não compreendo este tipo de pensamento e digo francamente que minha música, seja bonita ou feia, não é nunca escrita no vácuo, sempre tento dar-lhe caráter.”

Verdi não poderia ter sido mais claro, mas se for para colocar de outra forma, vale recorrer a Massimo Mila. Aqui, a realidade artística coincide com a realidade humana – e forma e conteúdo passam a dialogar, conciliando a verdade dramática e uma representação puramente musical.

Pois a Cia. Ópera São Paulo, que começa a comemorar seus 35 anos de atividades, resolveu juntar os últimos três atos das óperas em um espetáculo que foi encenado por Davide Garattini Raimondi e regido por Abel Rocha, à frente da Orquestra Sinfônica de Santo André, no Teatro Sérgio Cardoso e no Teatro Municipal Flávio Florence, na cidade do ABC paulista, onde assisti à última récita. A iniciativa faz parte do projeto A caminho do interior, do Instituto Italiano de Cultura.

O programa começou com Il trovatore, com Joyce Martins como uma Leonora de voz ampla, ainda que nem sempre equilibrada do ponto de vista das dinâmicas; Vinicius Atique como um sólido Conde de Luna; Richard Bauer como Manrico, sempre na chave heroica; e Nathalia Serrano em uma intensa caracterização de Azucena. Em Rigoletto, foram destaques a delicadeza e a sofisticação do canto de Raquel Paulin como Gilda, assim como o idiomático bobo da corte de Rodolfo Giuliani (Allan Faria fez um Duque problemático, na emissão e na afinação). E, em La traviata, a soprano Thayana Roverso e o tenor Daniel Umbelino ofereceram leituras comoventes: ela, com uma Violeta que não nos deixa esquecer da morte que paira sobre tudo nessa ópera; ele, com um Alfredo que consegue ser delicado e gentil em seu desespero, com um controle expressivo tocante. Uma construção impressionante, mesmo. Atique, como Giorgio Germont, a baritonista Ariel Bernardi como Dra. Grenvil e Anita Andreotti como a enfermeira fecharam o elenco do ato vocalmente mais equilibrado do espetáculo. Abel Rocha, por sua vez, demonstrou, nos três atos, o regente de ópera que é, atento a sutilezas da música, ressaltando passagens aqui e ali sempre a serviço do teatro, como no trabalho com as cordas em Traviata ou na intensidade (nunca força) com que conduziu a sempre devastadora cena final de Rigoletto.

É possível que o palco do Teatro Sergio Cardoso, maior, tenha dado outras possibilidades para Garattini, mas, aqui, sua direção se limita praticamente a organizar a cena. Nesse sentido, chama atenção como Giorgia Massetani consegue criar, com seus painéis, cenários tão diferentes (a organização do espaço em Rigoletto é de um artesanato simples e impressionante).

O único momento em que as mãos de Garattini se revelam de maneira mais pessoal é no início do ato final da Traviata, quando, ao som do prelúdio, Leonora e Gilda aparecem deitadas no palco, mortas. É um recurso a aproximar as três heroínas, mas o efeito acaba sendo o de chamar a atenção para o que elas têm de diferente entre si.

Isso porque o destino das três mulheres é trágico, mas suas tragédias não são as mesmas. Gilda e Leonora sacrificam-se para salvar os homens que amam. Violeta, não. A morte já lhe é dada como fato irreversível desde o início da ópera. No mundo dos vivos, porém, ela reage às injustiças com um sacrifício não pelo homem que ama, mas em nome da possibilidade do amor, ainda que não possa ser o seu.

Colocar os três últimos atos em conjunto permite, assim, estabelecer paralelos imediatos entre as obras, no palco, evidenciando semelhanças e diferenças. Se elas forem do mesmo compositor, então, as possibilidades se ampliam. E, no caso de Verdi, bom... Um dia com Verdi é sempre um bom dia. 

Daniel Umbelino, Thayana Roverso, Ariel Bernardi e Anita Andreotti em 'La traviata' [Divulgação]
Daniel Umbelino, Thayana Roverso, Ariel Bernardi e Anita Andreotti em 'La traviata' [Divulgação]

 

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