#ÓperaHoje: Para artistas, é preciso repensar o conceito de “contemporâneo”

por Redação CONCERTO 14/10/2020

Primeiro dia do webinar #ÓperaHoje teve palestra sobre Carlos Gomes e debate a respeito do patrimônio da ópera brasileira e da criação de novas obras

A programação do webinar #ÓperaHoje, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, teve início na tarde de terça-feira, dia 13, com a participação da presidente da Fundação Clóvis Salgado, Eliane Parreiras, e do secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais Leônidas Oliveira. Ambos ressaltaram o foco da programação: discutir o mercado da ópera à luz da contemporaneidade, entendendo a atividade de produção de espetáculos como uma atividade diversa, múltipla e acessível.

Em seguida, o crítico musical e jornalista João Luiz Sampaio fez a primeira palestra da programação, sobre os 150 anos da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, ressaltando a importância do resgate da obra como forma de se reforçar a importância do gênero operístico como parte da cultura brasileira – e de se discutir, a partir de suas contradições e da forma como foi reinterpretada, questões de nosso tempo.

Paulo Ésper, da Cia. Ópera São Paulo, falou da experiência do Concurso Maria Callas, criado em 1993. Mostrou alguns dos principais espetáculos realizados ao longo da história da companhia, independente, assim como ressaltou a importância do trabalho em prol do espaço para jovens cantores, com master classes com músicos de todo o mundo. Para ele, a companhia é um “trampolim” para novos artistas. Ésper também falou do plano de união de companhias independentes atuantes em São Paulo para a criação de um “corredor de produção” no interior do estado.

A primeira mesa do webinar #ÓperaHoje foi realizada em seguida, com o tema Patrimônio e Contemporaneidade, com participação do encenador André Heller-Lopes, do crítico musical João Marcos Coelho, da compositora Jocy de Oliveira, do maestro Silvio Viegas, e mediação de Nelson Rubens Kunze, diretor-editor da Revista CONCERTO e um dos curadores do webinar.

Algumas perguntas foram colocadas para os convidados da mesa, que pretendia fazer um panorama sobre a ópera no Brasil e no mundo de hoje, da preservação e difusão do repertório histórico à criação de novas obras e seu potencial em refletir o mundo contemporâneo. A ópera é importante nos dias de hoje? O patrimônio brasileiro está sendo devidamente preservado? Qual a importância de compor óperas hoje?

André Heller-Lopes falou da ópera na pandemia, ressaltando iniciativas na Europa, como óperas ao livre, para defender a arte neste momento. No Brasil, diz ele, a ópera sofre com questões políticas e com o não fortalecimentos das instituições. Sobre o tema da mesa, ele diz que precisamos repensar o termo “contemporâneo”. “A ópera contemporânea é aquela que espelha o homem moderno. Somos hoje homens renascentistas, que dialogam com todas as facetas do mundo atual. Não dá mais para acreditar que uma linguagem atonal é mais moderna do que uma tonal, e também não podemos mais falar de encenação da mesma maneira.” Para ele, muitas montagens ditas modernas já ficaram datadas, “assim como uma produção de Zeffirelli também já não encontra espaço em mundo sem orçamentos.” Para ele, há resistência ao repertório brasileiro, uma resistência que precisa ser vencida, “uma vez que novas óperas falam da nossa cultura, das questões de nosso tempo”. “Parcerias são para isso fundamentais.”

João Marcos Coelho falou em seguida. “Não faz o menor sentido você admitir uma ou outra linguagem como contemporânea. No momento em que temos no spotify a história da música inteira, adotar um comportamento xiita é absurdo. Eu fui xiita pela música experimental, mas hoje compreendo que todas a linguagens têm direito de cidadania. A ópera e a música de concerto também têm direito de cidadania na cultura brasileira,” Se isso não acontece, ele acredita, é porque o setor não soube se legitimar. “Se olharmos os últimos 30 anos, foram os projetos que se legitimaram socialmente que tiveram continuidade, caso da Osesp, do Festival Amazonas, da Filarmônica de Minas Gerais.”

Nesse sentido, diz Coelho, “a ópera tem um poder que não usa”: o de pensar de modo crítico a realidade brasileira a partir do impacto que desperta no público. “Flo Menezes, com seu Ritos de Perpassagem, lotou o Theatro São Pedro, como não faria na Sala São Paulo com uma obra sinfônica. Prism, de Ellen Reid ao discutir um tema atual, o abuso sexual, teve uma incrível repercussão e saiu fora do gueto, das tribos da ópera. Uma ópera como Navalha na carne, que está sendo composta por Leonardo Martinelli a partir da peça de Plínio Marcos, importa não pela linguagem, mas também pelo tema, que fala da gente, da nossa história e da nossa realidade.” Ele sugere que grandes personagens da história brasileira, como Ernesto Nazareth ou Lima Barreto, podem ser temas de novas obras. “Se nos preocuparmos com a nossa realidade, poderemos enfim sair do gueto, essa crosta que envolve a música de concerto e a ópera e que de vez em quando é furada.”

Para Jocy de Oliveira, “a humanidade sempre se deixou inebriar pelo sonho da ópera, que mexe com o nosso inconsciente coletivo e por isso mesmo precisa ser reinventada”. “A ópera precisa evoluir junto com o nosso mundo, com nossa diversidade cultural. Precisamos reformular o seu conceito, distante das convenções do século XIX, de uma visão da mulher como vítima ou morta no final. Esse perfil já não representa o mundo de hoje. E o que fazer então? O problema é que os teatros não estão dispostos a ousar. Sinto isso na pele. A ópera é uma propriedade da cultura eurocentrista. Se ela é criada fora desse eixo, é esquecida.” Ela falou de Liquid Voices, seu último trabalho. “Ela trata de um tema social e político. Não preciso usar Nazareth para usar um tema nacional. Sou parte de um mundo, ainda que um mundo que nos marginaliza, em especial às mulheres.” Do ponto de vista estético, ela insiste que, como dizia Stravinsky, o compositor é inventor. “Como a ciência, a arte também é assim. Estamos todos contribuindo para o desenvolvimento da música. O preconceito estético não é do público. Nunca tive uma obra encomendada, mas isso tem a ver com as instituições e com o fato de eu ser mulher. Não tem nada a ver com o púbico.”

O último a fazer sua apresentação foi o maestro Silvio Viegas. “A ópera está bem em termos de artistas, há diretores brasileiros, cantores fazendo carreira excepcional, no Brasil e lá fora. Do ponto de vista do fazer musical, temos dois festivais estabelecidos, em Belém e Manaus, com continuidade, que é uma palavra fundamental, assim como no Palácio das Artes, com quarenta e nove anos de ópera sem interrupção.” Para o maestro, o público está aberto. “A contemporaneidade está na comunicação. Quando você chega ao público e consegue tocá-lo, está comunicando, está fazendo arte e sendo contemporâneo.” Para ele, “a ópera é um meio de comunicação riquíssimo”. “Mas isso só vai acontecer se houver esse perfeito casamento de linguagens. Não é só o tema, é como é feito. É muito importante fazer. Dar oportunidade. E fazer uma única vez é muito pouco. Quem aqui ouviu Traviata uma vez só? É conhecer uma obra à fundo que oferece uma relação com ela.”

Debate do webinar #ÓperaHoje

A questão estética deu continuidade ao debate. “O que ficou claro na fala do Silvio é a importância da qualidade de invenção. Como diz Augusto de Campos, se ela tem qualidade, a obra se impõe”, afirma Coelho. Heller-Lopes ressalta que é preciso ter espaço para obras desafiadoras como a de Jocy de Oliveira, mas também para outras abordagens. Jocy não concorda. “O que eu penso como invenção tem a ver com uma frase de Stephen Hawking: por que não ter a memória do futuro em vez da memória do passado? Seria trazer a bagagem cultural, a memória que nós temos, pois sem ela não existe invenção, mas procurar o futuro, senão estamos parados. Nem tudo é contemporâneo. Estamos vivendo numa época de pandemia, num mundo distópico, no século XXI, com conflitos raciais, discriminação. Como não reagimos a isso? Esse é o nosso mundo. E precisamos de uma linguagem para reler esse mundo. E não é a linguagem do século XIX.”

Para além da questão de novas obras, Nelson Kunze colocou em questão nossa relação com o chamado grande repertório. “A legitimação social é o ponto. Um teatro tem que fazer Flo Menezes, Jocy de Oliveira, La traviata, Rigoletto. Mas, mesmo fazendo essas obras conhecidas, como torná-las obras que dizem respeito a nós? Os grandes teatros de ópera não devem se reposicionar um pouco para tratar das demandas contemporâneas? Como trazer estas questões para a instituição teatro de ópera?”, questionou. “Como criar uma ideia de pertencimento na comunidade com relação à ópera?”

“Não tem nada mais icônico dos que os teatros municipais de São Paulo e Rio de Janeiro, mas a instabilidade das instituições, as mudanças a cada quatro anos e a fragilidade institucional barram qualquer projeto consistente que possa levar a essa ideia de pertencimento”, diz Heller, que chamou também atenção à questão da falta de preservação de montagens, assim como Jocy de Oliveira: “Não é algo com a ópera. É um ponto comum em todo o Brasil. É a falta de memória.”

João Marcos Coelho encerrou sua participação falando da necessidade de se lutar por uma política pública permanente, na esteira da defesa contra as intervenções políticas na área cultural. “Com continuidade, você elimina o compadrio”, disse. Heller falou da necessidade de diálogos. “Desenvolveu-se uma geração de diretores talentosos, mas que não entenderam que precisamos discordar, sermos inimigos íntimos, com comunicação, com circulação de produções. Mas com uma ressalva: não se pode mais esquecer da técnica, cair no amadorismo, você precisa saber quanto precisa, qual o fluxo de trabalho. É a transpiração. É preciso ter técnica, saber que orçamento não é buraco sem fundo.” E Silvio Viegas lembrou que não podemos esquecer o que nos fez nos apaixonar pela ópera. “Precisamos buscar essa essência, esse sentimento. Para mim, a ópera tem a ver com a capacidade de falar com o ser humano. De emocionar o ser humano, de falar com verdade. A ópera, seja de qual ópera for, se falar com o ser humano, nunca vai morrer, por mais problemas que ela tenha. Essa beleza da emoção, da humanidade, é isso que nos encanta. E seguirá nos encantando.”

Assista abaixo ao vídeo completo da programação do dia.

#ÓperaHoje dia 13/10/2020

9'22" a 22'00" Abertura do Webinar – Eliane Parreiras (15 minutos)

23'00" a 1h20'00' Palestra 1 – Carlos Gomes / Guarani 150 Anos
Palestrante: João Luís Sampaio (SP)

1h20'00" a 1h44'00" Apresentação de caso 1 – Cia Ópera São Paulo, por Paulo Ésper, SP

2h08'00" a 3h50'23" Mesa 1 – Patrimônio e contemporaneidade
Mediação: Nelson Rubens Kunze. Convidados: André Heller-Lopes (RJ), João Marcos Coelho (SP), Jocy de Oliveira (RJ) e Silvio Viegas (MG)

 

Confira a cobertura especial da Temporada de Óperas on-line da Fundação Clóvis Salgado.

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