Alto nível artístico marca apresentação do duo Eliane Coelho e Gustavo Carvalho 

por Nelson Rubens Kunze 04/04/2023

Realizado na semana passada na Sala Cecília Meireles, recital pode ser assistido no YouTube

Não é de hoje que a Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, é ponto central da música clássica brasileira. Fundada em 1965, a Sala abrigou em sua história importantes programações, algumas delas verdadeiros marcos de nossa cultura clássica. Após a reforma levada a cabo por João Guilherme Ripper em sua primeira gestão à frente da instituição, a Sala foi reinaugurada em 2014, com novas instalações e acústica. Ripper, que em 2018, depois de uma breve interrupção, voltou à direção da Sala Cecília Meireles, implementou uma programação criteriosa e de qualidade e consolidou o espaço como um verdadeiro Wigmore Hall brasileiro. (Para quem não sabe, o Wigmore Hall de Londres é uma das mais importantes salas de música de câmara do mundo...)

Começo assim para escrever sobre um recital sensacional que a Sala Cecília Meireles apresentou na semana passada, sexta-feira, dia 31 de março (infelizmente não estive no Rio de Janeiro, assisti no YouTube). Sensacional pelos artistas e pelo repertório. A apresentação reuniu a soprano Eliane Coelho e o pianista Gustavo Carvalho. Aos 72 anos, com uma carreira coroada de sucessos na Europa, onde pertenceu aos elencos da Ópera de Frankfurt e depois nada menos do que da Ópera de Viena, Eliane Coelho é uma de nossas grandes cantoras. E a sua performance no recital foi mais um acontecimento de altíssimo nível artístico. Contribuiu decisivamente para o sucesso da apresentação o pianista Gustavo Carvalho, de 42 anos, formado em Viena (Oleg Maisenberg) e Moscou (Elisso Virsaladze). Gustavo vem realizando uma carreira singular como camerista e também como idealizador e curador – ele é diretor artístico do Festival Artes Vertentes, que acontece todos os anos em Tiradentes, Minas Gerais.

O recital iniciou-se com os Poemas da rainha Maria Stuart, op 135, de Robert Schumann (1810-1856). O breve ciclo de pouco mais de 10 minutos compreende cinco canções para soprano e piano e foi o último composto por Schumann, em 1852. Ele é baseado em poemas que, como se acredita, foram escritos pela própria Maria Stuart – eles foram retirados de uma antologia preparada por Gisbert Vinckes. 

Maria Stuart, nascida em 1542, viveu uma vida atribulada, foi rainha consorte na França e rainha da Escócia e acabou decapitada em 1587, aos 44 anos, acusada de conspirar contra a sua prima, Elisabeth I, rainha da Inglaterra.

Os poemas levam os títulos Despedida da França, Após o nascimento de seu filho, Para a rainha Elisabeth, Despedida do mundo e Oração. A escrita de Schumann é econômica no piano, o que dá espaço à dramaticidade do canto. E o que se vê e ouve no YouTube, com Eliane Coelho e Gustavo Carvalho, é extraordinário.

O próximo ciclo apresentado foi o das Canções de amor de Ricarda Huch, composto por Viktor Ullmann (1898-1944), em 1939. De ascendência judaica – seus pais, contudo, haviam se convertido para o catolicismo antes do nascimento do filho –, Ullmann foi perseguido pelo nazismo, foi preso no campo de concentração de Theresienstadt – onde chegou a compor até uma ópera – e acabou assassinado em Auschwitz. Entre outros, Ullmann estudou com Arnold Schönberg e Alexander von Zemlinsky. A sua escrita é caracterizada pelo uso de harmonias dissonantes e tem um viés expressionista.

O ciclo tem cerca de 15 minutos e é formado por cinco canções sobre texto de Ricarda Huch, poetisa, filósofa e historiadora alemã nascida e 1854 e falecida em 1947, com os seguintes títulos: De onde retiraste toda a beleza, Ao piano, Canção da tempestade, Se eu conseguisse fazer algo de belo, Ó bela mão, cálice, cuja fragrância é música. E no recital da Sala Cecília Meireles temos uma interpretação emocionante. 

Após o intervalo, Eliane Coelho e Gustavo Carvalho voltaram para apresentar obras pouco conhecidas de Richard Wagner (1813-1883), compostas em sua maior parte na década de 1830. Primeiro, quatro canções sobre texto em francês: Esperança (L’attente, com letra de Victor Hugo), a linda e melodiosa Dorme, meu filho (Dors mon enfant, anônimo), a tocante O túmulo diz à rosa (La tombe dit à la rose, Victor Hugo), que é quase um solo a cappella, e São todas imagens fugazes (Tout n'est qu'images fugitives, de Jean Reboul). 

Em seguida, em alemão, duas peças sobre texto de Goethe: Gretchen am Spinnrade (mesmo poema da famosa canção de Schubert) e o Melodrama de Gretchen, praticamente uma declamação dramatizada.

Fechando o programa, a dupla interpretou, sempre de Wagner, O adeus de Maria Stuart (Les adieux de Marie Stuart, sobre texto de Pierre Jean Béranger).

É no todo simplesmente magistral a interpretação de Eliane Coelho registrada no YouTube. O timbre de sua voz empresta uma austeridade apropriada para as canções, que interpreta com absoluto domínio técnico. Fazendo uso de uma rica paleta de cores, com vibratos cuidados e controladas inflexões de dinâmica, Eliane oferece uma interpretação virtuosa de grande emoção e entrega. Se é a soprano que aparece em primeiro lugar, é necessário destacar também a sensibilidade e concentração musical do pianista Gustavo Carvalho. O artista é um ourives no acompanhamento e sabe dosar sua participação em perfeita sintonia interpretativa. Se você gosta de canções e de recitais de canto, não perca: é realmente um espetáculo! (clique no link abaixo)

p.s. Volto ainda brevemente à Sala Cecília Meireles. Leitores da Revista CONCERTO acompanharam em nosso site as recentes acomodações na política cultural fluminense que levaram à exoneração do compositor João Guilherme Ripper da direção da Sala Cecília Meireles. Assumiu o gestor Aldo Mussi, e Ripper foi deslocado para um cargo de assessoria na presidência da Funarj, órgão ao qual à Sala Cecília Meireles está subordinada. Esperamos que o novo arranjo não interfira na excelência da programação que marca a Sala Cecília Meireles desde sempre e, especialmente, nesses últimos 10 anos.

 

Gustavo Carvalho e Eliane Coelho, no recital na Sala Cecília Meireles (reprodução YouTube)
Gustavo Carvalho e Eliane Coelho no recital na Sala Cecília Meireles (reprodução YouTube)

 

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