‘Café’ e a atualidade da ópera em São Paulo

por Camila Fresca 06/06/2022

No início de maio, no esteio das comemorações pelo centenário da Semana de Arte Moderna, o Theatro Municipal de São Paulo levou ao palco uma montagem da ópera Café, um projeto original de Mário de Andrade, que escreveu o libreto em 1942. Quando Mário concebeu seu texto já haviam se passado vinte anos desde a realização da Semana, que dava seus primeiros passos em direção à consagração que ganharia ao longo das décadas seguintes.

Café é fruto de um momento diferente do Mário de Andrade irreverente e interessado sobretudo em questões estéticas que capitaneia a Semana em 1922. À inovação da linguagem soma-se a busca por uma arte brasileira, ainda na década de 1920. Nos anos 1930, os modernistas alcançam os postos oficiais e é dali que desenvolvem seus projetos – Mário, por exemplo, assumiu o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, do qual havia sido um dos idealizadores, em 1935, mesmo momento em que é chamado a elaborar o anteprojeto do Sphan, que mais tarde se materializaria no Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 

Seu pensamento e produção artística seguem se transformando e, na década de 1940, um Mário de Andrade maduro, desiludido com os caminhos da ditadura Vargas e vivendo pela segunda vez os horrores de uma guerra mundial caminha cada vez mais em direção ao socialismo. É nesse contexto que surge o libreto, que trata da crise das exportações brasileiras de café em decorrência do crash da bolsa de Nova York em 1929. Mário, no entanto, está interessado em falar da coletividade, mais especificamente dos trabalhadores do campo e da cidade que sofrem os impactos mais duros da crise. 

Cena da ópera "Café", de Felipe Senna [Divulgação]
Cena da ópera "Café", de Felipe Senna [Divulgação]

Café não foi concebida como uma ópera tradicional, centrada em personagens individuais, que se dividem entre protagonistas e papeis secundários, mocinhos e bandidos. Não existe a trajetória do herói nem o par romântico. É uma ópera coral na qual se impõe o desafio de narrar trajetórias coletivas, vozes que quase nunca se individualizam. Mário originalmente imaginou que a música seria composta por Francisco Mignone, que nunca concluiu o trabalho. Outros flertaram com o texto até que, na década de 1990, Hans Joachim Koellreutter fez sua versão da obra. 

O Municipal assumiu a tarefa de apresentar uma nova versão de Café e o desafio de compor uma nova música para um libreto escrito há 80 anos ficou com Felipe Senna. O compositor paulistano trabalhou a partir de uma adaptação feita pelo dramaturgo Sérgio de Carvalho. Felipe encontrou soluções inteligentes para a complexa dramaturgia do texto, evitando que uma ópera que é quase todo o tempo coral caísse em monotonia ou repetição, e misturando com naturalidade elementos vindos da música de concerto tonal, da música popular e tradicional e da música contemporânea. 

Se não deixa de ser emocionante acompanhar, 80 anos depois, a obra feita no palco que seu autor imaginou e com o grupo que ele criou, este Café nada teve de passadista, e este é provavelmente o ponto mais importante da montagem

Uma peça-chave para o bom resultado foi o tremendo trabalho do Coral Paulistano, dirigido por sua titular Maíra Ferreira, que respondeu com precisão e entusiasmo aos desafios que a escrita coral propunha. Vale lembrar que o Paulistano foi criado pelo próprio Mário de Andrade em 1936, quando era diretor do Departamento de Cultura. Os detalhes do libreto nos indicam que a obra foi pensada para os espaços do Municipal. Por que não imaginar, portanto, que ela foi também pensada para o Paulistano, que nasceu para incluir o canto em português na programação da casa? 

Se não deixa de ser emocionante acompanhar, 80 anos depois, a obra feita no palco que seu autor imaginou e com o grupo que ele criou, este Café nada teve de passadista, e este é provavelmente o ponto mais importante da montagem. A obra trata de questões sociais e políticas que estão mais vivas do que nunca no Brasil de 2022: a fome, o desemprego, o cinismo de lideranças políticas e (por que não?) a revolta popular. Foi uma espécie de encontro entre passado, presente e futuro.

Sérgio de Carvalho, que dirigiu a montagem ao lado de Maria Lívia Goes (tendo ainda João Malatian na assistência e consultoria artística), é diretor do grupo teatral Companhia do Latão e concebeu uma ópera de grande força política e diálogo direto com a atualidade. Além do Paulistano, da Orquestra Sinfônica Municipal dirigida por Luís Gustavo Petri (que estreou a ópera de Koellreutter em Santos em 1996) e de solistas convidados, a montagem contou com participações marcantes de artistas de fora do universo lírico: o ator Carlos Francisco, como o velho camponês; a cantora Juçara Marçal como a mãe; e o cantor e compositor Negro Leo como o rapsodo, atualizado para um MC e entregador de aplicativo. A eles se somaram dançarinos do Balé da Cidade de São Paulo, artistas circenses e artistas do MST que, empunhando bandeiras, adentraram as laterais do teatro no momento em que está prestes a romper a revolta popular.

O resultado foi um espetáculo eletrizante, cuja manifestação do público foi mais do que as esperadas palmas ou risos – público, aliás, que ia além dos habituais frequentadores das temporadas líricas. Na saída, espectadores ruidosos e motivados que discutiam a obra e sua relação direta com a atualidade faziam lembrar mais uma plateia de espetáculo teatral do que de música de concerto. A récita que assisti, no dia 7 de maio, estava lotada (parece que foi assim em todas as cinco) e foi ótima a sensação de sair de um Municipal vivo, pulsante.

Também é preciso dizer que algo similar acontece no Theatro São Pedro, que tem conseguido dar a obras consagradas leituras contemporâneas e conectadas aos dias atuais. Lembro da recente Os Capuletos e os Montequios, de Bellini, apresentada em abril, cuja direção cênica de Antônio Araujo, diretor do Teatro da Vertigem (não por acaso, outro nome vindo do teatro), deslocou a cena dos jovens amantes da Itália do século XIII ao Brasil do século XXI – com indígenas, negros, LGBTs e outros grupos minorizados sendo atacados enquanto armas, violência e milícia são louvadas por uma parcela da classe política.

Talvez tudo isso seja uma necessidade dos tempos extremos em que vivemos e é ótimo que esse diálogo finalmente chegue à música de concerto por meio da ópera. Ao escrever o Café, Mário de Andrade estava convicto de que a arte deveria ser mais do que apenas fruição estética, e que esta só fazia sentido conjugada com a função social do artista. 

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Cena da ópera "Café", de Felipe Senna [Divulgação]
Cena da ópera "Café", de Felipe Senna [Divulgação]

 

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Os ingressos acabaram bem rápido. Quando fui comprar não tinha mais. Lamentei profundamente a imprevidência de não ter sido imediatista nesse caso e de não ter comprado o ingresso na primeira oportunidade. Acho que esse texto é da época da “Missão de Pesquisas Folclóricas”, era o tempo em que Mario de Andrade estava em contato com a etnóloga Dina Dryfus, certamente com o Lévi-Strauss também. E, agora, nesse momento de paroxismo político do Brasil, a obra é montada com a participação de um Movimento Social autêntico! Foi uma ideia linda, incrível. Tem que ter mais apresentações. Tomara que tenha.

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