Oposicantos, de Flo Menezes, estreada no Theatro São Pedro, nos lembra, em arte, do poder da dialética
O método dialético é um dos mais interessantes da história da filosofia. Ele permite um desdobramento peculiar dos conceitos. Por meio da razão eles se transformam a partir de um movimento interno, a ponto de se tornarem um novo conceito, um conceito atualizado. É um processo.
O que espanta é que tal transformação não se dá de outra forma, no método dialético, a não ser pela contradição, aquela que habita todos os conceitos.
O filósofo e psicanalista Vladimir Safatle lembra que a dialética já foi vista como um procedimento diabólico, um ardil feito para confundir, com “a força retórica de inverter o sentido de todas as palavras, de embaralhar sim e não, de fazer tudo passar em seu oposto”.
E, após citar um trecho da Fenomenologia do espírito, de Hegel, Safatle comenta: “No coração desta dialética delirante encontra-se, na verdade, um desejo diabólico de dissolver a segurança do mundo e, com ele, as figuras singulares do espírito e os pensamentos determinados”.
Segurança do mundo: o determinado. Dialética: abertura do possível. Longe de mero capricho, ardil ou jogo de palavras, a dialética tem a ver com uma busca de mundos possíveis a partir de uma espécie de suspensão do mundo atual. Trata-se de buscar o movimento contínuo que tudo transforma, na “pulsação interna da experiência do conceito” – em direção à revolução.
A autora sabe que este é um site sobre música de concerto, não filosofia. Mas é incauto aquele que não percebe o paralelo inescapável entre a loucura da arte e a loucura da filosofia, que tudo põe de cabeça para baixo em indagações insistentes, muitas vezes até ofensivas, assustadoras, desconfortáveis mesmo. E belíssimas.
Creio que seja essa a chave mestra de Oposicantos, obra de Flo Menezes que estreou na última semana no Theatro São Pedro, em São Paulo. Sem segredo algum: o próprio compositor declara que se trata de uma ode à dialética, uma obra em movimento na qual as ideias são personagens. Vamos falar de algumas delas, num esforço de, ao mesmo tempo, contar sobre a experiência sensível da obra.
Transformações: itinerários
Há alguns itinerários que percorremos durante Oposicantos. O principal dentre eles, implícito na obra, é aquele que nos leva do Inferno ao Paraíso, como em Dante. Entre o começo e o fim desse itinerário, Flo Menezes nos apresenta várias Situações (com parcimônia as podemos chamar de Seções, para usar uma terminologia familiar) nas quais oposições são escancaradas em textos que compreendem, sem exagero, uma seleção de toda uma história registrada do pensamento humano, de conteúdos condizentes, de acordo com a poética do compositor, aos três diferentes pontos que norteiam a Divina comédia: Inferno, Purgatório, Paraíso.
Em meio à insistência dessas oposições, Flo Menezes às vezes decide repousar. Apoia-se em cosmologias que talvez sejam, a seu ver, imanentes, e, por isso, sem oposições. São aquelas representadas pelo texto mais antigo de Oposicantos: o de Lao-Tsé, chamado Tao Te Ching – O livro do caminho e da virtude, escrito-base do taoismo.
Transformações: movimento
Movimento não falta em Oposicantos. Há diferentes vetores: o som eletrônico que viaja, que cresce em densidade e intensidade; a presença do canto-voz que circula em todos os cantos-espaços do teatro. O coro, massa que chora, grita e ajuda fazer soar densos, belos acordes. E circulam rapidamente pelo espaço.
Visualmente presente o tempo todo, do início ao final de Oposicantos, está a figura do pêndulo. E ele pode ser regular, mas não é permanente. Não demora para que se transforme: aplicando um pouco mais de força, o movimento pendular passa a ser circular. E, aplicando força centrípeta ou centrífuga, passamos à espiral. Pode ficar mais complexo, se adicionarmos mais um eixo à haste: terminamos no pêndulo duplo, aí sim oposto ao primeiro pêndulo, já que totalmente aperiódico, imprevisível.
As transformações desses objetos eram projetadas no pórtico localizado no palco, à maneira do espaço estoico no qual os filósofos dessa vertente se reuniam (a videografia ficou a cargo de Raimo Benedetti). E, no início, a iluminação, criada por Mirella Brandi, dá forma a um grande triângulo, figura geométrica implícita do movimento pendular.
Esses movimentos múltiplos, transformados ao longo de Oposicantos, passam do periódico ao aperiódico; do determinado (conhecido) ao indeterminado (desconhecido). E a disposição mais comum, a regular, está intimamente ligada à música: é a que marca o tempo, sobretudo pelas vias do metrônomo, som que é ouvido no início da obra.
Itinerário: Crisipo
Diante disso tudo, é necessário que alguém nos tome pela mão, ainda que somente às vezes, e nos leve pelas veredas desses caminhos. Esse auxiliador vem na figura de Crisipo, expoente do estoicismo, certamente o personagem mais definido, de carne, osso e ideia (e histórico), em Oposicantos. E, no sentido dantesco, é possível que Crisipo também tenha um pouco dos guias de Dante, que o conduziram do Inferno ao Paraíso.
Não que Crisipo nos dê respostas, não. Mas é ele quem está em contato com o público. Ele nos dá dicas, nos provoca, nos fornece algumas chaves de interpretação.
“Viver em harmonia ou desarmonia: acatar ou atacar teses contrárias. Coisas semelhantes por palavras diferentes; coisas diferentes, por palavras semelhantes” – Crisipo.
Mas o que têm a ver esses itinerários e movimentos todos com a música, afinal? Pode-se representar o pêndulo como for, mas qual a realização musical do indeterminado? Os músicos todos não passam o mês inteiro ensaiando a obra? O que tem de “indeterminado” nisso?
Há muito ensaio, mas ainda assim nem tudo está sob controle: há uma diferença entre a nota escrita na partitura e o tratamento eletrônico em tempo real de sons atacados no ato da performance, isso sem falar em possíveis trechos em aberto que Flo Menezes pode ter deixado a cargo dos músicos.
Os cantores, tanto solistas quanto coro, em vários momentos imitaram notas emitidas pela eletrônica em tempo real, operada por Menezes, com assistência de Vinícius Baldaia e Paulo Itaboraí. É este o jogo entre determinação e indeterminação, entre performance e gravação, entre acústico e eletrônico, no campo da música. Agora imaginemos um pêndulo que oscila entre esses dois momentos e teremos, além da transformação, uma primeira ideia de oposição.
Digressão: performance
Muito se diz da recepção de obras contemporâneas por parte do público, mas pouca gente fala sobre a absoluta bravura, solidariedade e paciência que os músicos devem ter na realização de uma obra da envergadura de Oposicantos. A escrita complexa é de enlouquecer; o músico é constantemente desafiado a criar maneiras de realização musical para além das normas tradicionais. Para os cantores, mais especificamente, pior ainda: adeus às referências de notas que ajudem (ou que permitam) cantar afinado. Adeus às entradas intuitivas. Onde estão o sentido, a lógica musical conhecida, a frase, a tonalidade?
Lembrete: estamos no campo do possível. Como diz Theodor Adorno, “aquilo que poderia ser diferente ainda não começou”.
Não é a primeira vez que a Orquestra do Theatro São Pedro topa uma façanha assim, e não só em Ritos de Perpassagem, primeira obra de Flo Menezes dentro do gênero, mas em óperas diferentes que o grupo sempre se propôs a fazer. Além da orquestra, o coro, preparado por Maíra Ferreira, bem como os cantores solistas (Katia Guedes, Luisa Francesconi, Aníbal Mancini e Isaque Oliveira, além de Gusavo Lassen, Crisipo) foram destemidos e concentrados, resolvendo a afinação no diapasão (é assim que tem que ser mesmo), conseguindo com sucesso sublinhar suas presenças fosse onde fosse no espaço do teatro tão somente com suas vozes potentes, o que é difícil numa densidade tão avassaladora de significados e camadas sonoras. E, mais importante: conscientes de que essa não é uma obra na qual a orquestra serve para acompanhar o canto e, portanto, não há instrumentos com os quais “competir”, já que não se trata de uma “competição”.
Voltemos.
Oposições: espaço
É curioso como um espaço tão tradicional quanto uma casa de ópera pode se assemelhar a uma instalação de arte contemporânea quando pensado de outra maneira. Pois a impressão foi essa mesma: o público de Oposicantos entrou na sala devagarinho, suspeitando, como se nunca tivesse visto nada daquilo. As pessoas olhavam em volta, ensimesmadas.
“A reflexão é um pensamento ensimesmado. Com fissura” – Crisipo.
A desconfiança se justifica. É que logo antes todos estavam confinados no hall do Theatro São Pedro, ameaçados por membros do Coro Contemporâneo de Campinas. Espalhados entre a massa espremida, os cantores e cantoras estavam (e permaneceram) vestidos de preto, com macacões pretos estampados com a haste do pêndulo sobre o qual já falamos (figurino de Awa Guimarães que se estendeu por todo o elenco, visagismo de Elis de Sousa). Eram uniformes apocalípticos de uma seita. E os cantores e cantoras do coro olhavam em frente, recusando-se a interagir, muito quietos e estáticos. Esquisito.
De repente, um som muito característico de berra-bois girando: era o sinal para que o público entrasse. Ufa.
Oposições: cena
Esqueça tudo o que já disseram a respeito da disposição orquestral e de como essa disposição é a perfeita organização para a fruição da música numa sala de concerto. Não. Aqui estamos no campo do possível. Oposicantos nos convida a essa experiência.
Estava tudo diferente: a Orquestra do Theatro São Pedro, em vez de escondida no fosso, aparecia em volta da plateia. O maestro, Eduardo Leandro, regia de frente, e não de costas. Os cantores pareciam estar em todo lugar, de tempos em tempos (aqui podemos entender “cantos” também como lugares em que esses cantos são emitidos).
Bem, em suma, tudo estava fora do lugar, mas havia uma organização bem clara. Era em favor da simetria: quem parava no meio do teatro (onde estava a harpa), podia ver com clareza uma espécie de espelho: cordas à direita e à esquerda; sopros atrás e na frente; cantos e eletrônica circulando. E, no palco, a não ser pela representação do pórtico estoico no qual os textos eram projetados, a presença estática de dois pianos (um Disklavier, midi, tocado “sozinho”, e outro executado por Alexandre Zamith) e um gigante tamtam, muito importante no discurso musical, localizado no meio.
A heterodoxia da proposta tem tudo a ver com as concepções que o diretor cênico Alexandre Dal Farra costuma empreender em suas montagens, com uma diferença: em Oposicantos, essa disposição é intrínseca à obra e não acontece arbitrariamente. Porque a música opera sobre essa disposição cênica: ela oscila para lá e para cá, viaja. Muitíssimo além da estereofonia. Não vem massificada, mas sim depurada, em direções imprevisíveis, surpreendentes.
O mesmo acontece com os sons eletrônicos, que ganham corpos a partir desse mesmo movimento, engendrado a partir da espacialização. Sons que ocorrem como corpos de balé invisíveis, coreografia pura no ar, dançando no espaço. Sinestésico mesmo.
“Tudo o que se move é um corpo, e a voz repercute em lugares-tempo estriados e lisos” – Crisipo.
![Cena da ópera 'Oposicantos' [Divulgação/Íris Zanetti]](/sites/default/files/inline-images/w-oposicantos.jpg)
Oposições: texto e canto
Há muitíssimas outras oposições que podem ser apontadas, como o próprio Flo Menezes ressalta na introdução do libreto de Oposicantos. Falemos, pois, apenas de mais uma, que é fundamental: a oposição dos textos.
Um exemplo especialmente musical: Rosa Luxemburgo versus Louis Zukofvsky versus Ezra Pound. São três fragmentos que tratam do ruído como tema central. Em Luxemburgo, o ruído se manifesta no ranger da areia sob seus pés, “uma singela e bela canção de vida, basta saber escutar”; em Zukofsky, o ruído aparece no queimar de uma cinza de cigarro que, por estar muito próximo de seu ouvido, se confunde com o crepitar de uma fogueira; esse ruído estranho, ouvido de perto, se contrapõe ao “rouxinol, distante em demasia para ser ouvido”, em Ezra Pound.
Verdadeira ode ao som. Flo Menezes retoma a ideia, agora em Kafka: “Um leve chiado, audível apenas em longas pausas, um nada [...], que, no entanto, [...] pode ser observado por algum tempo, ou seja, escutado de tempos em tempos, registrando pacientemente o resultado”. É o ruído que vira som que vira ruído, no conto A Toca.
O que é isso senão o processo composicional, o processo de abertura à escuta?
“Opostos: dar sentido às nossas falas. Quanto mais singular, mais múltiplo. A ambiguidade mora na palavra” – Crisipo.
O esquema formal de Oposicantos nos aponta 4 lieder, gênero com o qual Flo Menezes escolheu dialogar justamente por seu caráter opositivo, binário (a forma-canção, A-B-A, é feita de contrastes, vide os lieder de Schubert).
Talvez o mais memorável deles tenha sido o último, no qual, a meu ver, a tradição do lied emerge plena: o tenor Aníbal Mancini e o pianista Alexandre Zamith, sobrepostos ao disklavier, de repente fizeram música de câmara. Bastou que a orquestração colocasse piano e canto em evidência, e que Mancini se posicionasse perto do piano, sentado em uma cadeira com uma pequena mesa à frente. Uma performance que se destacou.
Movimento: dialética
A história de Oposicantos não tem um final feliz. Na verdade, não há história. Escreve Flo Menezes: “O que é essencial, em Oposicantos, é poder se afirmar algo e, simultaneamente, afirmar seu contrário. Colocar tudo em dúvida, como bem aconselhava Marx. Como já enunciado naquela minha primeira Ópera, trata-se de romper com a necessidade narrativa da Ópera tradicional e tematizar as questões a que se propõe a obra pelas vias de sua musicalização radical”.
Oposicantos é a poética da transformação de sistemas complexos não a partir da conciliação, mas a partir do conflito. Por desconfortável que seja, trata-se de colocar a contradição no centro, priorizar o movimento e sair da inércia, que é outro nome para ideologia. Questionar, provocar, reorganizar os conceitos, duvidar do que está dado: criar mundos possíveis. Filosofia e música: são irmãs que se reencontram nesta nova obra de Flo Menezes.
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