Garra, apuro e empenho na construção de uma sonoridade conjunta

O festival é de inverno, e a cidade mais inóspita do Brasil não se fez de rogada: um manto gris e uma chuva fina conferiam atmosfera gótica à Sala São Paulo na manhã do domingo, dia 9, para a apresentação da Orquestra do Festival de Campos do Jordão.

Metrô, fila para entrar e, dentro da sala, o grande baque: Rogério Zaghi sobe ao palco para anunciar que o Prelúdio e Morte de Tristão e Isolda, de Wagner, será executado em versão puramente instrumental, pois a soprano Eliane Coelho cancelou sua participação “por motivos de saúde”.

Confesso que, nessa hora, levei instantaneamente a mão à carteira, para buscar meu Bilhete Único. Tristão sem Isolda! Ainda na última quinta-feira, no festival, em seu recital de canções de Rachmaninov, ao lado do pianista Luiz Gustavo Carvalho, a diva parecia estar com a voz ótima, sem qualquer vestígio de problema. Por outro lado, o coro de tosses que atuou em contraponto constante à orquestra no concerto de domingo era testemunha eloquente da agressividade com que o inverno da poluída capital paulista, com suas mudanças abruptas de temperatura, ataca as vias respiratórias.

Aliás, as tosses não foram as únicas personagens da paisagem sonora desta apresentação. A grande novidade da 53ª edição do Festival de Inverno de Campos do Jordão é que todos os eventos têm entrada franca. Em mês de férias escolares, trata-se de uma oportunidade única para os moradores da lúgubre Pauliceia conhecerem um dos raros prédios da cidade dotados de alguma beleza – e, de quebra, assistindo a atrações de primeira linha.

O público, felizmente, tem abraçado essa ocasião, e enchido as apresentações do festival. Sincera e natural, essa plateia não se porta com o gélido automatismo e a contrição soturna que rege os afetados rituais dos frequentadores habituais de concerto. Sua atitude parece-se antes com a do público de shows de música popular. Assim, eles circulam mais entre as cadeiras, conversam, usam seus celulares. E seus aplausos, espontâneos, não se restringem aos momentos convencionais.

É uma audiência que pode bater palmas não apenas nos intervalos entre os movimentos, como (a exemplo do que aconteceu no quarto movimento da sinfonia de Chostakóvitch) durante a execução. Exatamente o que acontece, digamos, em um show de jazz, quando o público aplaude calorosamente após um solo especialmente bem sucedido do saxofone ou do trompete – e sem que ninguém seja fuzilado por um olhar carrancudo, ou calado por um “psiu” não raro ainda mais ruidoso do que as palmas.

Neste domingo, mal o Prelúdio de Wagner havia chegado ao quarto compasso, e um alarme disparou. Impassível, o maestro alemão Henrik Schaefer não deu “piti”, nem fez qualquer gesto de desaprovação: apenas interrompeu a música, reiniciando assim que o barulho cessou.

Pouco tempo depois, na fileira G da plateia central, um bebê de colo, com a veemência requerida pela ocasião, pôs-se a reivindicar seu desjejum. Incontinenti, a mãe ofereceu-lhe o peito. Saciada, a corada criança manifestou sua justa gratidão até o fim da peça, com uma torrente incessante de murmúrios jubilosos que, beneficiados pela acústica generosa da Sala São Paulo, puderam chegar de maneira nítida e cristalina aos ouvidos todos os presentes.

Em seguida, sem intervalo, veio o grande desafio musical da manhã: a Sinfonia nº 10, de Dmítri Chostakóvitch (1906-1975). Em 2023, comemoram-se os 70 anos da morte de Stálin, e a obra, estreada em Leningrado (atual São Petersburgo), em dezembro de 1953 – portanto, nove meses após o falecimento do sanguinário ditador – soa como um doloroso sumário do stalinismo e um acerto de contas do compositor com o sátrapa que tanto o perseguiu.

Se o nível de um festival mede-se pela qualidade dos bolsistas que ele é capaz de atrair, a 53ª edição é mais do que digna da gloriosa história do Festival de Inverno de Campos do Jordão

Assim como nas grandes tragédias shakespearianas, a décima de Chostakóvitch mistura registros, alterna estados de espírito, e entrelaça o público e o privado: o compositor emprega sistematicamente seu monograma musical, o motivo formado pelas notas ré(D), mi bemol(Es), dó(C) e si natural (H) – na notação musical alemã, as letras que correspondem à transliteração germânica de seu nome, D. Sch (para Schostakowitsch). Outro tema, inicialmente enunciado pela trompa, repete-se nada menos que doze vezes: mi(E)-lá(A)-mi(E)-ré(D)-lá(A). Neste caso, Chostakóvitch faz alusão a seu amor da época, a pianista e compositora azeri Elmira Nazírova (1928-2014).

Seguro e enérgico, Schaefer soube manter o foco de seus comandados ao longo de uma hora de música exigente. Lemos em seu currículo que ele começou como assistente de Claudio Abbado e é diretor musical da Folkopera de Estocolmo. Mas talvez o item mais relevante para sua atuação no festival seja sua experiência na Academia da Ópera Nacional da Holanda e na Universidade Hanyang de Seul, bem como o posto de diretor artístico do programa de performance de orquestra da Universidade de Gotemburgo. Alguém, portanto, acostumado a lidar com jovens músicos – como os que estavam sob sua batuta na Sala São Paulo.

Claro que Schaefer não faz música sozinho, e o belo resultado que se ouviu no domingo não seria possível sem o evidente talento dos bolsistas da Orquestra do Festival. Vale destacar não apenas a garra muitas vezes ausente das burocráticas orquestras profissionais, mas também o apuro dos solos e o empenho na construção de uma sonoridade conjunta. Se o nível de um festival mede-se pela qualidade dos bolsistas que ele é capaz de atrair, a 53ª edição é mais do que digna da gloriosa história do Festival de Inverno de Campos do Jordão.

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Músicos da Orquestra do Festival com Fabio Zanon, coordenador artístico e pedagógico do evento [Reprodução/Facebook]
Músicos da Orquestra do Festival com Fabio Zanon, coordenador artístico e pedagógico do evento [Reprodução/Facebook]

 

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