Intensidade no retrato de um mundo desolado e austero

por Jorge Coli 14/05/2022

Produção da ópera The Consul de Giancarlo Menotti no Teatro Colón de Buenos Aires é espetáculo comovente e arrebatador, convincente em todos os seus sentidos

“Tive meu período quando achavam que eu era um grande gênio da ópera, e agora todo mundo cospe em mim”, declarou Giancarlo Menotti em 1981.

Depois de The Consul, Menotti teve um fantástico momento de glória, quando obteve o prêmio Pulitzer e tornou-se capa da revista Time. Um enorme sucesso que o tornou objeto de desprezo por parte de esnobes intelectuais.

“Seu mundo musical é o do verismo italiano: um Puccini que está em casa nos arranha-céus e na época dos aviões”, disse um crítico com desprezo elegante. Opinião que Boulez resumiu com uma chibatada: “Menotti é o Puccini do pobre”. Parece-me significativo que o título do artigo que anunciou sua morte, em 2007, no jornal La Stampa, tenha sido “E' morto Giancarlo Menotti, l'ideatore del Festival di Spoleto” (Morreu Giancarlo Menotti, o idealizador do Festival de Spoleto): não é anunciado como o grande compositor, de fama universal, mas como promotor de festivais...

Sob esses preconceitos, suas óperas foram rareando no repertório. Nunca desapareceram de fato, porque são excelente música e excelente teatro. Agora, que a tirania vanguardista decresceu – tirania da qual ele faz uma crítica irônica numa passagem de Maria Golovin –, Menotti se revela cada vez mais um compositor de primeira água.

Um militante político é perseguido por uma tirania qualquer, um estado policial, e tem que sair do país. Sua mulher quer obter um visto no passaporte para acompanhá-lo com o filho de ambos. Nada mais atual, hoje, em que países se fecham, em que imigrantes se desesperam, em que a pandemia isolou tudo

Foi um regalo assistir a The Consul, ou El Cónsul – como estava enunciado nos cartazes e programa –, nesse magnífico e mágico teatro que é o Colón, de Buenos Aires (récita do dia 8 de maio). Inda mais porque foi um espetáculo comovente e arrebatador, convincente em todos os seus sentidos.

The Consul é uma obra em que Menotti expõe a crueldade dos mecanismos administrativos, a surda e impassível violência da burocracia. Um militante político é perseguido por uma tirania qualquer, um estado policial, e tem que sair do país. Sua mulher quer obter um visto no passaporte para acompanhá-lo com o filho de ambos. Nada mais atual, hoje, em que países se fecham, em que imigrantes se desesperam, em que a pandemia isolou tudo. Ópera kafkiana, decerto, mas de um Kafka ancorado em situações bem concretas e violentas, nada metafóricas. 

A música desenha os personagens com força e cria os ambientes: como é terrível a sala de espera no consulado, com esse diplomata que nunca aparece, na qual destinos humanos dependem de um carimbo ou de uma assinatura. Como são cruéis os impedimentos inventados pela mesquinhez humana: a fotografia não tem o tamanho correto, o pedido deve vir em duas vias, falta a certidão de nascimento, a assinatura precisa ser oficializada. Todos nós já passamos por esses momentos de não-vida, em que aguardamos uma porta se abrir, numa repartição pública, na expectativa de que um funcionário, enfim, anuncie o fim do longo labirinto criado pela papelada exigente.

Em The Consul, o grande vilão é invisível: mais do que o chefe de polícia, é o estado opressor, na figura de um representante sempre mencionado e nunca presente: o cônsul. Seu representante é a secretária, guardiã de todas as barreiras, espécie de robô indiferente mas que, num momento revela seu lado humano, desesperando-se e exclamando: tantos nomes, os casos são todos iguais... 

A música de Menotti não é dramática, no sentido dos grandes efeitos teatrais. Ela se tece em intensidades inspiradas, nas quais as vozes mergulham. O compositor sabe escrever para os cantores com perfeição; eles soam com esplendor em meio ao tecido orquestral.

Sem se perder em caprichos de originalidade idiossincrática e bizantinismos supérfluos, o diretor Rubén Szuchmacher foi rigoroso na leitura da obra

A produção contou com uma fenomenal protagonista, o soprano argentino Carla Filipcic Holm, que deu proporções gigantescas ao personagem de Magda Sorel, ponto central de toda a história. Sua formidável cena do segundo ato, aplaudida com intensidade e calor raros, momento culminante, é bem difícil de esquecer. 

A Secretária, cantada por Adriana Mastrangelo, mezzo soprano de origem uruguaia, mostrou-se perfeita em sua personificação da máquina burocrática. Sucesso particular obteve Pablo Urban, o patético alívio cômico da ópera. O brasileiro Leonardo Neiva tomou o breve, mas significativo, papel de John Sorel, o militante perseguido, com segurança e convicção.

O maestro inglês Justin Brown soube dar clareza e a intensidade lírica que a obra exigia; fez soar com finura a orquestra relativamente pequena, na sublime acústica do teatro, sem perder nunca o sentido dos encadeamentos e a visão geral da obra.

A montagem de Rubén Szuchmacher chegou ao ideal. Sem se perder em caprichos de originalidade idiossincrática e bizantinismos supérfluos, foi rigoroso na leitura da obra. Criou um mundo desolado e austero, cinza, em que qualquer vitalidade parecia se esvair. Respeitou a data em que a ópera foi criada, e situou-a nos anos de 1950, ou seja, em seu momento de origem. O suicídio com o gás do fogão, morte sem efeitos de eloquência teatral, foi admiravelmente concebido pelo encenador.

Positivo em todos os seus pontos, este El Cónsul confirma o Colón naquilo que ninguém duvida, ou seja, no seu lugar de um dos primeiros teatros internacionais de ópera.  No final do espetáculo, os aplausos intensos, muito sentidos, não foram os de um entusiasmo superficial: antes, manifestaram, em seu calor, um público transportado pelas forças poderosas da obra.

Leia também
Notícias
 Com nova sede e parcerias, Núcleo de Ópera da Bahia apresenta temporada
Notícias Cristian Budu vai dirigir escola e festival de piano em Ouro Preto 
Notícias Festival de Campos do Jordão anuncia datas para inscrições de bolsistas

Cena de "The Consul" no Teatro Colón de Buenos Aires [Divulgação/Arnaldo Colombaroli/Teatro Colón]
Cena de "The Consul" no Teatro Colón de Buenos Aires [Divulgação/Arnaldo Colombaroli/Teatro Colón]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.