Nova montagem de "O guarani" reafirma sua grandeza como obra capital da nossa história

por Jorge Coli 15/05/2023

A simpática montagem que o Theatro Municipal de São Paulo oferece de Il Guarany, a ópera de Carlos Gomes, deu muito certo. Musicalmente, Roberto Minczuk investiu energia e rigor na regência, elevando a obra nas alturas que ela merece. O casal protagonista foi perfeito, na voz, na poderosa encarnação dos personagens. O soprano Nadine Koutchner, bielorussa, com timbre caloroso, encorpado, com maravilhosa capacidade de vocalizar, criou uma Cecilia antológica. A emoção que ela transmitia contagiava a todos, e sua segurança vocal permitia uma sensação ao mesmo tempo de naturalidade e de encantamento. O paraense Atalla Ayan, que continua fazendo uma sólida carreira internacional, pode se inscrever na galeria dos grandes Peris que já foram cantados por tenores ilustres. Apenas ambos bastariam para justificar a apresentação.

Os outros intérpretes demonstraram alto nível, a começar pelo baixo Lício Bruno, soberbo em sua invocação do deus dos Aimorés. Andrey Mira, vencedor do 14º Concurso Maria Callas, impressionava pela qualidade vocal e pelo tom de mando com que exprimia o poder de Don Antonio de Mariz. Rodrigo Esteves criou um Gonzales com elegância e estilo. Todos os outros completaram dignamente suas partes, Guilherme Moreira como Don Alvaro, Carlos Eduardo Santos como Ruy, Orlando Marcos como Pedro e Gustavo Lassen como Alonso. O Coro Lírico Municipal assegurou belamente a grandeza das esplêndidas páginas corais da obra.

Visualmente, as escolhas dos cenários e figurinos instalaram ambientes muito sugestivos: do quarto lunar de Cecília ao aspecto suntuoso da taba dos aimorés, com o colorido de inúmeras redes que pendiam do teto, foram admiráveis

A concepção geral de Ailton Krenak e a encenação de Cibele Forjaz funcionaram. A natureza de Il Guarany parece ter sido bem compreendida. Trata-se de uma ópera que segue o modelo do Grand Opéra francês, no meu conhecimento a primeira escrita nessa natureza para um teatro italiano. Esse modelo, de grande espetáculo, com seus números sucessivos bem recortados e precisos, com a ação descontinuada e convencional, recebeu, na montagem do Municipal, uma solução clara: personagens entrando em cena em plataformas empurradas por auxiliares da contrarregra, por vezes com gestos mecânicos, robóticos. Don Antonio de Mariz, do alto de uma escada, fazia-se dominador. 

A integração intercalada dos números da Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre’y Kuery tinha grande naturalidade, numa fluência que não destoava com o espírito da ópera: essas intervenções reforçavam e atualizavam a mítica indígena no espírito da plateia por meio de episódios de canto e dança muito bonitos. Está claro, por mais autêntico que seja um índio e sua música no palco, ele está sempre posto em cena, está fora de seu mundo e de sua vida real, tornando-se uma ficção como os Peri e Iberês de Carlos Gomes e, são eles também, exóticos para o público que assiste a um espetáculo, a uma representação. Os cativantes guaranis que ali se apresentaram, além de tudo, correspondem a uma sensibilidade atual em favor das lutas indígenas e atendem à expectativa do público, que aplaudiu calorosamente, com razão. Peri e Cecilia eram acompanhados por duplos de si mesmo – os atores David Vera Popygua Ju, Peri, e a atriz Zahy Tenthehar Guajajara, Cecilia –, e a presença desses duplos como que explicitava os afetos ocorridos entre os dois. 

Visualmente, as escolhas dos cenários e figurinos instalaram ambientes muito sugestivos: do quarto lunar de Cecília ao aspecto suntuoso da taba dos aimorés, com o colorido de inúmeras redes que pendiam do teto, foram admiráveis. Uma sonda de rosca infinita voltava com frequência, sugerindo – a mim, pelo menos – a exploração das riquezas da terra.

Alguns senões, de somenos e, um, maior. O balé que se passou durante a abertura, por trás da transparência na boca de cena, na qual se projetavam imagens, ficou ocultado e confuso. Raramente a montagem perdia o foco da ação, mas durante a maravilhosa balada escrita por Carlos Gomes para Cecilia, foi projetado um documentário muito antigo de uma expedição entre indígenas, com intertítulos “críticos”, o que trazia uma concorrência de atenção entre o que estava sendo mostrado e o que estava sendo cantado. É frequente que encenadores não familiarizados, ou indiferentes à ópera, ao encenarem uma, têm receio de que o público se entedie com longas cenas e árias, e se sentem obrigados a colocar alguma diversão. Não sei se foi o caso aqui, mas isso ocorreu também enquanto Cecilia e Peri cantavam o sublime dueto Perchè di meste lagrime e no centro do palco cuidava-se em transportar vasos de flores. 

A concepção narrativa foi clara, sem bizantinismos. Apenas o cacique dos Aimorés, ou seja, o chefe dos resistentes à invasão dos europeus, para quem Carlos Gomes escreveu uma parte muitíssimo nobre e inspirada, foi apresentado como um senhor careca e barbudinho de meia idade – o baixo Lício Bruno – vestido com o que parecia ser uma capa de gabardine clara, calças e sapatos. Ele se preocupava com plantas secas, livros e macetava coisas num almofariz: não duvido que essa concepção sibilina tenha significações profundas, eu é que não fui capaz de captá-las.

A montagem não decoloniza nada, felizmente, já que esse verbo – decolonizar – é apenas instrumento conceitual com o qual o pensamento norte-americano anda colonizando a cultura no Brasil

O senão maior, no meu ver, foi a supressão do “ballo”, o ritual de antropofagia dos aimorés. Como ele poderia ter servido para uma encenação de denúncia dos massacres, das destruições ecológicas, do sofrimento, da fome, das doenças do povo indígena ou não! O modelo do grand opéra francês, a que me referi acima, faz do bailado um núcleo essencial do espetáculo, e sua supressão forma uma lacuna no cerne da ópera. John Neschling já havia cometido essa bobagem de suprimi-lo em Washington e Bonn e, pior, na gravação que fez para a Sony com Plácido Domingo, mas não é uma razão para que seus passos sejam seguidos. Talvez tenham pensado que encompridaria muito uma ópera que é longa. Pode ser, não sei: se for isso, o acréscimo de quinze minutos de bela música nunca seria demais. Mas são pontos menores, diante da força que se desprendia do espetáculo.

Há elementos fascinantes em Il Guarany. Creio que é a única ópera que tem apenas um só personagem feminino – em todas as outras há pelo menos alguma comprimária. Cecilia, adolescente, solitária num mundo de homens brutais, violentos, matadores de índios – o conflito coletivo da ópera começa porque um branco assassinou uma jovem da tribo dos aimorés -, refugia-se em seus sonhos e no afeto por Peri. Isso torna o estupro interrompido de Gonzales, que já começa violando seu quarto de dormir, como ato ainda mais abominável. Gonzales contém em si a cobiça, a falsidade, mas sobretudo concentra a pulsão erótica masculina, daquela sociedade de machos à beira do descontrole e capaz de todas as brutalidades.

Outro aspecto que me impressiona em Il Guarany é o caráter suicida do empreendimento colonizador. A briga interna, entre europeus, faz com que Dom Antonio de Mariz exploda seu castelo matando a si mesmo e a todos. É como se o projeto colonial excluísse qualquer futuro civilizatório, no sentido mais digno da palavra. 

Enfim, essas não foram as intenções dos encenadores, e são divagações minhas. Resta que o atual Il Guarany no Theatro Municipal de São Paulo fortalece e legitima a admirável ópera escrita por Gomes, graças à excelente qualidade musical e grande inteligência cênica. Não decoloniza nada, felizmente, já que esse verbo – decolonizar – é apenas mais um instrumento conceitual com o qual o pensamento norte-americano anda colonizando a cultura no Brasil. Ao contrário, afirma a grandeza de Il Guarany como obra capital em nossa história.

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Cena de 'O guarani', no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação]
Cena de 'O guarani', no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação]

 

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