Entre break dance, piruetas e saltos mortais, imperdível espetáculo cênico-musical The Fairy Queen irradia emocionante humanidade
A produção de The Fairy Queen pelo conjunto especializado em música antiga Les Arts Florissants, o conjunto vocal Le Jardin des Voix e a companhia de dança Käfig é simplesmente extraordinária! É um espetáculo artístico acabado, em que números musicais e coreográficas se sucedem em uma performance de alto nível. Assisti à apresentação no Teatro Cultura Artística, na segunda-feira, dia 15 de setembro.
The Fairy Queen é uma “semi-ópera” de difícil classificação. Ela foi escrita pelo compositor barroco Henry Purcell (1659-1695) como música para ser intercalada, junto com dança, à apresentação da peça Sonho de uma noite de verão, de William Shakespeare (1564-1616), criada um século antes. O texto, bastante alterado em relação ao original, supõe-se que seja de autoria de Thomas Betterton.
Por sua própria concepção, a obra não tem um desenvolvimento dramatúrgico. Não há uma história contada. Cada um dos cinco atos tem um caráter próprio em torno de um tema alegórico ou fantástico. Essas “masques”, como são chamadas, funcionam como um espetáculo paralelo à peça principal, em que se sucedem partes instrumentais ou com solistas e coros, sempre acompanhadas pela dança e movimentos teatrais. Esses quadros não narram ou descrevem a peça principal, mas sugerem atmosferas e sensações. Em The Fairy Queen, cada masque trata de um tema específico, como a natureza, as estações do ano, o amor ou o mundo mitológico, ampliando o clima fantástico da obra de Shakespeare.
Depois de sua estreia em fins do século XVII – mais precisamente em 1692, no Queen’s Theatre Dorset Garden em Londres –, The Fairy Queen ficou esquecida, até que o material original foi redescoberto no início do século XX. De lá para cá, a obra ganhou vida própria, dissociada do texto de Shakespeare, e foi apresentada e gravada inúmeras vezes. Hoje é reconhecida como uma das mais belas e inspiradas partituras de Purcell. E é mesmo! A música é linda, de grande inventividade poética.
Mas a música incrível de Purcell nós já conhecíamos. A grande novidade dessa produção é a igualmente espetacular parte de dança criada pela Compagnie Käfig e seu diretor, o coreógrafo Mourad Merzouki. O grupo vem do universo da arte urbana, do hip hop e da break dance. Então, imagine: música barroca da masque inglesa do século XVII com dança de rua urbana do século XXI. Tem tudo para dar errado. Mas, com sensibilidade e virtuosismo coreográfico, Merzouki logrou alcançar um resultado em que a música e a dança se complementam gerando um todo atemporal e universal de grande potência artística, que extrapola qualquer rotulação.
Um dos trunfos da encenação é a feliz mescla dos ótimos cantores do Le Jardin des Voix – que é a academia vocal do Les Arts Florissants – com os excepcionais dançarinos do Käfig, tanta na movimentação como nos figurinos, integrando-os em um só conjunto de atores. As diversas cenas são criativas, sempre com soluções novas, alterando sequências de grande vibração com emocionantes passagens introspectivas. Entre impressionantes piruetas, saltos mortais e cenas de break dance e outros gêneros da arte urbana, o espetáculo cênico-musical, altamente sensível, irradia uma emocionante humanidade.
Entre diversas passagens sensacionais, quero destacar dois momentos memoráveis: a sequência de solos da Noite, do Mistério, do Segredo e do Sono que culmina com o coro “Hush, no more, be silent all” (Silêncio, basta, calai-vos todos); e o sublime trecho da soprano em “The Plaint: O let me ever ever weep!” (Oh, deixe-me chorar para sempre, para sempre), com o spalla Emmanuel Resche-Caserta tocando em cena – não sei se todos perceberam o novo Teatro Cultura Artística se descolando do chão e plainando em alguma outra dimensão...
O espetáculo tem direção musical e regência de Paul Agnew e coreografia e direção cênica de Mourad Merzouki. O sensacional Le Jardin des Voix é composto pela soprano Paulina Francisco, as mezzo sopranos Giorgia Burashko, Rebecca Leggett e Juliette Mey, os tenores Ilja Aksionov e Rodrigo Carreto, o barítono Hugo Herman-Wilson e o baixo-barítono Benjamin Schilperoort. E é obrigatório nomear os ótimos bailarinos da Companhia Käfig: Baptiste Coppin, Samuel Florimond, Anahi Passi, Alary Ravin, Daniel Saad e Timothée Zig.
Combinando excelência musical e ousadia cênica, a produção reafirma a vitalidade da arte, independentemente do tempo e do espaço.
Ainda haverá reapresentações hoje (dia 17) e na quinta-feira (18). Se puder, não perca.
Assista abaixo um trecho do espetáculo disponível no YouTube:

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