Gabriella di Laccio, prestes a ser agraciada com título britânico, nos faz lembrar da importância do intérprete como pesquisador, ativista catalisador de novas escutas
A soprano Gabriella di Laccio receberá o título de Membro da Ordem do Império Britânico, o MBE. A notícia circulou na última semana, mas di Laccio ficou sabendo bem antes, quando recebeu uma carta do gabinete do Primeiro-Ministro. “Abri o envelope o mais rápido que pude e li o conteúdo inúmeras vezes, como se não acreditasse nas palavras”, conta, em entrevista à CONCERTO.
A carta informava, “em estrita confidencialidade”, que ela receberia a honraria pelos “serviços prestados à Música e à Igualdade de Gênero”. Agora ela espera a data oficial em que deverá comparecer ao Palácio de Buckingham.
Gabriella di Laccio tem uma trajetória inspiradora com a fundação da Donne, Women in Music, projeto que ela comanda há 10 anos. O site (veja aqui) traz uma “big list” com mais de 5 mil compositoras, abarcando desde o período medieval até os dias de hoje. Além da construção dessa verdadeira enciclopédia paralela da história da música, outro marco: a realização de um longo recital com compositoras e compositores não-binários. Let HER Music Play aconteceu na embaixada do Brasil em Londres no ano passado. Foram 24h de música ininterrupta, com mais de 50 artistas colaborando. Entrou para o Guiness.
As iniciativas ajudam tanto as mulheres quanto a própria música de concerto, cujas orquestras e instituições têm despertado vagarosamente para programas mais instigantes. Já muito criticadas por sua curadoria preguiçosa, essas orquestras têm encontrado em ferramentas como a Donne uma fonte de pesquisa que possibilita escolhas de repertórios que possam acrescentar frescor a obras consagradas.
Trata-se mais da diversificação do repertório do que da anulação do cânone. Strauss fica diferente posto ao lado da música nova de Unsuk Chin; e uma Abertura da compositora romântica Emilie Mayer, na mesma tonalidade do concerto para piano de Mozart que a sucede, pode ser interessante também. Ambos os exemplos vêm da temporada deste ano da Osesp.
A pesquisa é uma face oculta e uma função pouco estimulada nos instrumentistas e cantores. É sempre bom lembrar que eles também são catalisadores de novas escutas
É louvável que uma intérprete pesquisadora esteja ajudando nesse futuro possível. Geralmente atribui-se às direções artísticas todo o bônus e ônus das escolhas de temporada, mas muita gente esquece que também cabe ao intérprete a proposição e defesa de novos repertórios frente a essa curadoria. É o intérprete que tem o poder de criação e difusão de programas diferentes. É o intérprete que, fora do palco, deve manter o apetite vivo por novos campos e possibilidades artísticas. A pesquisa é uma face oculta e uma função pouco estimulada nos instrumentistas e cantores. É sempre bom lembrar que eles também são catalisadores de novas escutas.
Gabriella di Laccio foi uma dessas catalisadoras, e, com muito merecimento, está agora prestes a receber o MBE. No entanto, ela parece não se importar muito com seu nome, sempre preferindo priorizar sua fundação. A soprano insiste em passar do assunto do MBE, motivo principal desta matéria, para trazer a fundação e suas iniciativas para o centro da conversa. É porque, para ela, o título não é puro e simples afago do ego, mas sim uma arma que ajudará no fortalecimento de seu projeto principal: a Donne. “A honraria não é minha. Ela pertence ao ‘o que eu vou fazer com ela’. E, para mim, está claro: meu compromisso é continuar fazendo tudo que estiver ao meu alcance para tornar a indústria musical mais inclusiva”.
Em terras brasileiras, essas iniciativas têm rendido frutos, ainda que, globalmente, a quantidade de compositoras mulheres tenha diminuído um pouco durante as temporadas – assunto detalhado na matéria de Camila Fresca em julho do ano passado [https://concerto.com.br/node/267438]. Por aqui, Gabriella di Laccio aponta uma mudança significativa, sobretudo na programação do Theatro Municipal de São Paulo, ponta de lança dessas novas políticas dentre os teatros tradicionais.
A pergunta fica no ar: teria Gabriella di Laccio sido agraciada por seu trabalho, fosse ele realizado aqui no Brasil? Como é comum, vemos nossos artistas reconhecidos lá, e não cá
“Quando a curadoria decidiu incluir mais compositoras em sua programação (processo no qual colaborei via Donne) os números começaram a mudar. Em 2024, 11% das obras programadas foram compostas por mulheres. Em 2025, esse número subiu para 22%. E em 2026, ultrapassará os 33%. Ou seja: decisões claras geram mudanças concretas. No fim, é uma equação simples”, diz. O levantamento de dados dos programas das orquestras, pesquisa que monitora a curadoria das temporadas em busca da igualdade de gênero e diversidade, faz parte das iniciativas da Donne.
É ótimo que um teatro do Brasil, país natal de Gabriella di Laccio, seja um dos vários que esteja abraçando essa nova perspectiva em busca de atualização. Já em termos de honrarias, o caso brasileiro tem feito certa pena. A Ordem do Mérito Cultural, concedida pelo presidente Lula em maio deste ano, agraciou apenas dois nomes da música de concerto – João Carlos Martins e o Festival Amazonas de Ópera – dentre a lista com mais de 100. É verdade que o governo teve de correr atrás do prejuízo do mandato anterior, que havia acabado com a premiação, mas ainda assim (e talvez por isso mesmo) a seleção deveria ter sido mais cuidadosa.
Será que entre 2019 e 2025 não houve um artista da música erudita a mais, que seja, merecedor do título – quem sabe mais merecedor do que a polêmica concessão a Janja, por exemplo? A pergunta fica no ar: teria Gabriella di Laccio sido agraciada por seu trabalho, fosse ele realizado aqui no Brasil? Como é comum, vemos nossos artistas reconhecidos lá, e não cá.
Apazigua a revolta saber que uma brasileira está à frente de uma plataforma que tem se mostrado relevantíssima para a pesquisa de novos repertórios, novos horizontes. Ganha a música de concerto do mundo todo, e ganham as mulheres. “Acredito profundamente no poder transformador da arte. Espero que essa conquista também inspire outras pessoas a fazerem o mesmo. Fica aqui o meu convite a todos os meus colegas: vamos ampliar mais vozes. Quem ganha com isso somos todos nós – nossos palcos, nossas plateias e, acima de tudo, as futuras gerações”, conclui Gabriella di Laccio.
![Gabriella di Laccio [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-gabriella_0.jpg)
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