A conta não fecha

por João Marcos Coelho 26/11/2019

"A conta não fecha". Esta foi a frase que o multi-instrumentista, arranjador e compositor André Mehmari usou para definir a atual situação dos músicos como peças de uma engrenagem industrial na qual eles deveriam ser os situados no lugar mais alto, já que são os criadores dos produtos que circulam por todo o planeta, graças às redes sociais (YouTube, Facebook e plataformas de streaming).

Eu falei “graças”? Desculpem. A palavra é “por causa”. Por causa do YouTube e do streaming eles curtem a lanterna, são os últimos colocados. Todo mundo lucra bastante com a música que eles produzem. Apenas eles são alijados do processo. Alguém dirá: mas os músicos recebem em função do volume de “likes” dos internautas.  É verdade. Recebem sim.

O que eu não sabia – e fiquei literalmente paralisado quando soube dias atrás – é que para ganhar 1 mísero real ele precisa receber mais de 16 mil audições numa plataforma, e em outra mais de 22 mil. Isso não é ganho, é trabalho escravo, falando português claro. Se minha continha estiver certa, para ganhar R$ 1 mil ele terá de garantir 16 milhões de audições!!!!  Nem os finados Elvis, Lennon ou mesmo os vivíssimos Kanye West e Lady Gaga.

Como sobreviver dignamente nestas condições? Ninguém conseguiria viver com o que se recebe dos chamados direitos autorais e/ou de intérprete no segmento digital. Ah, mas ainda existem os CDs. Semana passada, alguém na BandNews FM comentou que “o último CD do Emicida é sensacional” – e foi imediatamente corrigido: “é álbum, CD não existe mais”.

Ora, existe sim. Ocupa nichos de mercado, como o vinil. E tem até funcionado como fonte alternativa de ganhos dos músicos de todos os calibres. Em suas apresentações públicas, nossos músicos repetem um gesto que marcou, nos anos 1970/80, o nascimento do movimento de música independente, fora do circuito fechado das grandes gravadoras. Aos cachês soma-se a venda dos CDs no final dos espetáculos. Isso vem acontecendo há vários anos em função do florescimento e aumento expressivo de volume das apresentações de cada um no decorrer do ano – independente de seus empregos fixos em orquestras ou demais grupos musicais. 

Outro erro. Escrevi “vem acontecendo”. O certo é: vinha acontecendo, já que em 2019 foi dada a largada para o enforcamento acelerado da vida musical no país. Já não temos Ministério da Cultura – e a Secretaria de Cultura federal está entregue às baratas, lá no quinto escalão da burocracia do Planalto.

Logotipo do YouTube

As secretarias estaduais e municipais de Cultura também convivem com cortes de verbas – e até o SESC já pisou no freio. Até agora, era a única entidade que movia a vida musical em sentido inclusivo, abrindo espaços amplos para todas as formas de invenção musical. Hoje está claramente ameaçado de cortes profundos em suas verbas, diretamente oriundas das empresas. A sugerida modificação dos mecanismos de financiamento do Sistema “S”, hoje imunes à política, com certeza a tornará amanhã quase certamente vítima da máquina pública voraz por novas “fontes” de autofinanciamento. Ou alguém acredita que o governo arrecadará o percentual e o repassará ao sistema S? Daí o visível breque de mão puxado em relação a 2020, um ano que promete ser ainda mais tenebroso para a cultura do que este que curte seus estertores.

A conta não fecha, porque ao cruel e perverso mecanismo global das plataformas digitais e do YouTube soma-se o sufocamento da música de invenção – a que não é comercial – sob ataque cerrado da própria entidade federal que deveria fazê-la florescer cada vez mais.

Cá entre nós, não sei por que estou tão indignado. Deveria estar conformado com tudo isso. Como escreveu nestes dias o jornalista Kiko Nogueira, filho de um dos meus mestres mais queridos em jornalismo, Emir Macedo Nogueira, vê-se bem o que significa a cultura no Brasil de hoje a partir das duas mortes públicas dos últimos dias. 

Gugu, um dos maiores responsáveis pelo lixo monumental que domina a televisão brasileira, foi cultuado como se fosse um gênio. E o rabino Henry Sobel foi mais lembrado pelo episódio do roubo das gravatas em Manhattan do que por ter peitado a ditadura no seu momento mais ameaçador, recusando-se a pactuar com a absurda tese do suicídio de Vlado Herzog e participando daquela corajosa missa na Catedral da Sé, ao lado do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Que país é este?

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