A infância de Cristo segundo Hector Berlioz

por Jorge Coli 21/12/2023

Com o Natal chegam os concertos “natalinos”: formações corais cujos programas são uma enxurrada melosa e babosa de Adestes fidelis, Noite feliz e quejandos. Acreditam que essas obras ajudem a criar o “espírito de Natal”, tão caro aos comerciantes.

Os maestros desses coros, muitas vezes acompanhados por orquestra, bem que poderiam melhorar a qualidade dos programas destinados à celebração do nascimento de Cristo.

Grandes obras inspiradas no Natal não faltam ao repertório. Tenho uma favorita que, infelizmente, é pouco programada: L’enfance du ChristA infância de Cristo, composta por Hector Berlioz.

O nome de Berlioz traz de imediato à mente uma orquestra colossal e enormes efeitos sinfônicos. Nas suas Memórias, o próprio compositor menciona, com ironia, essa fama de gigantismo:
“O príncipe de Metternich me disse, um dia, em Viena:
– É o senhor que compõe música para quinhentos músicos?
Ao que eu respondi:
– Nem sempre, monsenhor, às vezes eu o faço para quatrocentos e cinquenta.”

Ora, A infância de Cristo está no avesso dessas formações descomunais. Foi concebida para um conjunto não muito grande de intérpretes. Berlioz definiu-a como uma “Trilogia sacra para solistas, coro, orquestra e órgão”. O trabalho de composição se iniciou em 1850, sem que Berlioz tivesse um projeto preciso na cabeça. 

Começou quando seu amigo, o arquiteto Duc, pediu-lhe, uma noite, que escrevesse alguns compassos em seu álbum. Diz Berlioz: 
“Pego um pedaço de papel. Traço algumas pautas, nas quais logo vem se pousar um andantino em quatro partes para órgão. Sinto nele um certo caráter de misticismo agreste e ingênuo, e me vem ao espírito de associá-lo a palavras do mesmo gênero".

O compositor cria então o coro dos pastores que faria parte de sua cantata. Decide, logo depois, apresentá-lo num concerto, e pregar uma peça no público anunciando que se tratava da obra de um certo Pierre Ducré, mestre de música da Sainte-Chapelle de Paris, de 1679. Os intérpretes se apaixonam por essa obra “antiga” e perguntam onde o compositor havia desenterrado aquilo:
“‘Desenterrar é quase a palavra’, respondi sem hesitar: ‘acharam-na num armário emparedado, quando fizeram a recente restauração da Sainte-Chapelle. Estava escrita num pergaminho com a velha escrita musical que tive muita dificuldade em decifrar’”.

A obra faz muito sucesso, e os críticos se comovem com esse recém-descoberto de quem nenhum deles ouvira falar. O arquiteto Duc pergunta a uma senhora – que admira a música dos tempos passados e despreza os compositores contemporâneos – o que havia pensado da obra:
“Perfeita, deliciosa! Isso sim é música. É a verdadeira melodia, que os compositores contemporâneos desconhecem. Em todo caso, não seria o Sr. Berlioz que faria algo assim”.

Quando Duc lhe revela a verdadeira autoria, ela morde os lábios, fica vermelha, e retruca:
“O Sr. Berlioz é um impertinente!”

Hoje, está claro, ninguém tomaria esse coro como algo do século XVII: isso é um fenômeno que ocorre em todas as artes, já que os falsários conseguem enganar apenas seus contemporâneos, e quando a obra envelhece um pouco, revela os traços do momento em que foi criada.

Porém, essa busca pelo passado fez com que Berlioz incorporasse em sua cantata algo de ingênuo, como que de “arcaico”, numa simplicidade de extraordinário frescor e liberdade. Cinzelou os timbres à maneira de um ourives trabalhando na joia a mais delicada. Criou uma narração direta e comovente, e anexou a esse primeiro coro diferentes episódios que constituem A infância de Cristo. Eles são três: “O sonho de Herodes”, “A fuga para o Egito” e “A chegada em Saís”. 

Angústias aterrorizadas de Herodes, precedidas por um fugato em forma de marcha que caracteriza a autoridade romana dos centuriões; adivinhos que aconselham o massacre dos inocentes, a primeira parte inicia-se tensa, para contrastar em seguida com a suavidade do presépio, em que anjos luminosos – “puros espíritos de luz”, diz o texto que foi escrito pelo próprio compositor – alertam a Sagrada Família do perigo e aconselham a partida.

Outro fugato para os instrumentos, inquieto, inicia a segunda parte. Em seguida vem o famoso coro dos pastores daquele falso Ducré, embebido de comoção sincera e tocante. Essa parte central completa-se com a narração do Recitante, tão expressiva e comovedora, descrevendo o descanso na fuga para o Egito. Nela, cada momento adquire profunda verdade musical.

A terceira parte começa novamente com um fugato, sobre o qual se dispõem as palavras do Recitante, simples e diretas: 

“O burro, no deserto, já havia caído;
E, bem antes de ver as muralhas de uma cidade,
De fadiga e sede, seu mestre teria sucumbido
Sem a ajuda de Deus.”

Na cidade de Saís, Maria e José pedem desesperadamente acolhida (a percussão tem aqui o papel dramático das batidas nas portas), mas todas as casas lhes são fechadas:

“Para trás, vis Hebreus!
Os Romanos não se importam
Com vagabundos e leprosos!”
Até que José encontra a casa dos Ismaelitas em que o pai de família lhes diz: 
“Entrai, entrai, pobres Hebreus!
A porta nunca é fechada
Em nossa casa, para os infelizes.
Pobres Hebreus, entrai, entrai”.

O Ismaelita também é carpinteiro, como José; eles trabalharão juntos e Jesus estará a salvo. Para completar o regozijo, os jovens Ismaelitas executam o maravilhoso trio para duas flautas e harpa, pois, diz o texto, a música apaga todo sofrimento. O Recitante conclui:

“Oh, minha alma, o que lhe resta fazer,
Senão quebrar seu orgulho diante de tal mistério? ...
Oh, meu coração, enche-te do amor profundo e puro...”

Berlioz pensou nos efeitos de espacialidade musical, dispondo o coro segundo indicações complexas. Não seria impossível pensar uma encenação, simples também, dessa obra.

Quem sabe algum maestro de bom gosto, no futuro, não apresente essa obra? Nossos ouvidos e, tenho certeza, o de Cristo aniversariante, ficariam felizes.

Pós-escrito: Há várias gravações de L’Enfance de Christ de bela qualidade. Indico a minha favorita, o CD da Harmonia Mundi, com Véronique Gens, Paul Agnew, Olivier Lallouette, Laurent Naouri, La Chapelle Royale, Collegium Vocale Gent e Orchestre des Champs-Élysées, sob a regência de Philippe Herreweghe. 

No YouTube há a interpretação de A Infância de Cristo com os solistas Michael Spyres, Ann Hallenberg, Lionel Lhote, Joseph William Thomas, Alex Ashworth, Gareth Treseder, o Trinity Boys Choir, o Monteverdi Choir, a Orchestre Révolutionnaire et Romantique e regência de John Eliot Gardiner:

 

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Fragmento de 'A infância de Cristo', de Berlioz [Reprodução]
Fragmento de 'A infância de Cristo', de Berlioz [Reprodução]

 

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