A imprensa política brasileira criou a expressão “jabuti” para identificar artigos que não têm nada a ver com o objeto do projeto de lei que está sendo votado nas duas casas do Congresso Nacional. A sacada é passar desapercebido. Ora, assim como jabuti não nasce em árvores, estes óvnis (para nós, grande público, mas sempre com endereço certo) também tentam passar desapercebidos.
Pois estes jabutis têm literalmente “invadido”, às vezes até por iniciativa dos próprios intérpretes, o mundo dos lançamentos em música clássica. Os jabutis começaram a proliferar desde o primeiro semestre deste ano. Os exemplos pululam entre CDs, os objetos fósseis (segundo a feliz definição de Luca Raele) que nem existem mais em sua versão física, mas apenas digital. E isso por motivos até certo ponto compreensíveis. Todos os envolvidos – gravadora e intérpretes – caçam desesperadamente faixas bem curtinhas, de muito efeito e brilhareco, para provocar “likes” nas plataformas. Tudo em nome da monetização.
No outro lado desta história, o “consumidor” de música. Ele ingenuamente pensa que está ouvindo gratuitamente tudo aquilo que – aos mais velhos, ao menos – sempre custou caro. Não percebe que ele é o “produto” que serve de radar diário, a cada audição, segundo algoritmos que lhe oferecem cada vez mais do mesmo. É o caminho mais reto para o emburrecimento da escuta. Neste sentido, não há praticamente nenhuma diferença entre o melômano que curte música sinfônica, grandes instrumentistas ou ópera, e o breganejo hipertrofiado que nos cerca e abocanha milhões de ouvintes incautos com... mais do mesmo. Neste último nicho, a sofrência; no mundo clássico, a sensação de que você é mais inteligente do que de fato é. Mas não se iluda, você é todo o tempo teleguiado pelos algoritmos do spotify, google, youtube, facebook, instagram, etc.,etc.
E os músicos, como ficam? Ora, ou se amoldam às diretrizes dos algoritmos, ou são sumariamente descartados. Viram “outsiders”, como os compositores e intérpretes da música viva, contemporânea. Amoldar-se é obedecer ao algoritmo. Papo reto, como dizem os funkeiros: ou você enfia goela abaixo uma pecinha que esteja no inconsciente coletivo da humanidade, ou dança.
Nossa escuta deteriorou muito nestas duas décadas de reinado do streaming. A sensação de que temos tudo à mão nos faz esquecer que baixou muito o nível de qualidade das chamadas linhas de transmissão do produto. A degradação da escuta é impressionante. Bach, Beethoven, Villa-Lobos, Brahms – pode incluir todos os compositores que você conhece e/ou gosta – são diariamente destroçados quando soam pelos nano-alto-falantes de um celular
As pantagruélicas gigantes digitais que determinam nossa escuta podem considerar-se absolutamente vencedoras. Nossa escuta deteriorou muito nestas duas décadas de reinado do streaming. A sensação de que temos tudo à mão nos faz esquecer que baixou muito o nível de qualidade das chamadas linhas de transmissão do produto. A degradação da escuta é impressionante. Bach, Beethoven, Villa-Lobos, Brahms – pode incluir todos os compositores que você conhece e/ou gosta – são diariamente destroçados quando soam pelos nano-alto-falantes de um celular.
Números divulgados há alguns meses dão conta de que as gravadoras nunca faturaram tanto como agora, na era digital. Um exemplo matador. É excelente o mais recente álbum do jovem prodígio finlandês da batuta Tarmo Peltokoski, 24 anos, que abriu na semana passada o novo Teatro Cultura Artística em grande estilo, à frente da Filarmônica de Câmara Alemã de Bremen. Lançado em maio passado, é seu primeiro álbum para a Deutsche Grammophon. Tarmo rege com muita vibração e eficiência os exemplares músicos de Bremen em três sinfonias de Mozart (35, 36 e 40). Excelentes interpretações. Só que ele intercala estas performances admiráveis com três improvisos seus ao piano, de 3 a 6 minutos cada, sobre cada uma delas. Não por acaso, as durações ultrapassam pouco o limite de uma faixa de música popular. Ele é bom pianista. Só que, como escreveu Alex Ross, o crítico da The New Yorker, parece música ambiente de restaurante dançante (cito de memória, o sentido é de “piano bar”). Ora, estes três devaneios mozartianos de Tarmo se encaixam certeiros no consumo rápido, efêmero, supérfluo. Pior: não lhe acrescentam nada, só embaçam suas consistentes performances das sinfonias mozartianas.
Para não me alongar demais, há exceções, claro. Uma delas, que me impressionou muito, é o álbum lançado em junho passado por dois pianistas: o russo Pavel Desyatnikov e o cazaque (nasceu no Cazaquistão) Samson Tsoy. Eles intercalam Trompe-l’oeil, obra inédita de Pavel entre duas obras consistentes, de mais de 20 minutos cada, de Schubert, para piano a quatro mãos bem conhecidas: a célebre Fantasia em fá menor, D. 940 e o Divertissement à la hongroise. Só que Trompe-l’oeil, ilusão de ótica, em geral aplicada às artes visuais, aqui é concebida musicalmente e se desenvolve por 20 minutos em movimento único. Uma peça de fôlego, que especificamente funciona como espelho para a obra mais célebre do álbum, a Fantasia em fá menor.
Mesmo assim, a gravadora, no caso a francesa Harmonia Mundi, interferiu. Numa entrevista sobre seu álbum de estreia na HM, Pavel revelou que a ideia do duo era ficar apenas com a Fantasia e o Trompe-l’oeil. Mas a gravadora insistiu em esticar o álbum... como se ainda existisse o entendimento de que estamos diante de um álbum. Talvez os marqueteiros da HM esperassem alguns bombons curtos pra serem consumidos nas redes. O duo devolveu um petardo de quase 30 minutos, incluindo o delicioso Divertimento à húngara, que acabou se tornando a obra mais extensa do “álbum”.
Há muito mais que se falar sobre a composição de Pavel, como o fato de que ele quis emular a sacada de Jorge Luis Borges em Pierre Menard, autor do Quixote: o conto fala deste autor fictício que teria se encarregado de reescrever o clássico de Cervantes em espanhol arcaico. No texto do encarte do “álbum”, Pavel diz: “Eu queria tentar um exercício análogo à Fantasia de Schubert, evitando citar o primeiro tema e realizando o trabalho em pequenos passos”. E conclui dizendo que “a Fantasia é um objeto inanimado. Podemos observá-la com calma e formar nossa própria imagem mental dela”. Quem escutar Trompe-l’oeil com atenção verá que ele dialoga estruturalmente, sem citações literais, com a peça de Schubert; portanto, entrega com inteligência o que promete. Faz todo sentido sua presença no álbum.
Duas conclusões provisórias:
1) parece que este cacoete de incluir bombons-jabutis em concertos e gravações nasceu na maravilhosa usina de formação de maestros finlandeses, conduzida pelo formidável professor de regência finlandês Jorma Panula. Em outro álbum recém-lançado, Janine Jansen sola concertos para violino de Sibelius e Prokofiev com a Filarmônica de Oslo regida por Klaus Mäkelä, outro fenômeno finlandês da batuta que vai assumir a partir de 2026 as orquestras de Chicago e a Concertgebouw. Depois dos dois concertos, Jansen e Mäkelä, ela ao violino, ele ao violoncelo, tocam em pizzicato um aforisma musical de Sibelius de 47 segundos intitulado Gotas d’água.
2) o efeito manada deve provocar um crescimento exponencial destes “jabutis” que de todo modo soam deslocados no que antigamente se chamava “álbum”. Felizmente, sempre haverá músicos como Pavel Desyatnikov dispostos a arremeter contra este iceberg.
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