Geografia e destino: Campos do Jordão e o festival de inverno

por Leonardo Martinelli 01/08/2019

Após a 50ª edição do evento, uma questão torna-se fundamental: qual é o real papel da cidade no festival?

Com o final do mês de julho encerrou-se mais uma edição do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Não se trata de uma edição qualquer, mas sim nada menos do que sua quinquagésima realização, meio século de um evento artístico de grande porte, reputado, respeitado e querido pela comunidade musical e por seu público. Essa edição tão especial foi pautada por algumas mudanças importantes, entre as quais, a reinserção da música popular em sua estrutura artística e um maior envolvimento da alta cúpula do governo paulista (em especial, a Secretaria de Cultura e Economia Criativa) em sua execução. Sem querer colocar água no chope dessa celebração, é importante aproveitar a efeméride para colocar em debate um assunto que, ironicamente, tem se tornado sensível no meio musical: qual é o real papel da cidade de Campos do Jordão no festival?

Como o próprio nome do evento indica, o festival tem sua essência ligada à cidade de Campos do Jordão, estância climática no interior paulista famosa por seu ar puro, clima frio e seco e por uma atmosfera pretensamente europeia, evocada aqui e acolá por um conjunto arquitetônico de inspiração normanda. Tem até quem a chame de “Suíça brasileira”. A história conta que a origem do festival está ligada a um projeto de ocupação do Palácio Boa Vista, espécie de residência de inverno oficial do Governo do Estado de São Paulo, responsável por sua execução e financiamento.

Iniciado como uma série de concertos improvisados, aos poucos o evento foi se desenvolvendo e, a um determinado ponto, tornou-se também um “festival-escola”, passando a acolher gratuitamente estudantes para se aprimorarem com os mestres de seu elenco artístico, seguindo o modelo de acampamento artístico de festivais estrangeiros. Um passo importante para a sua consolidação foi a inauguração do Auditório Claudio Santoro, em 1979, equipamento arquitetônico cravado na mata (incrível pensar que o Estado tenha investido em algo assim 20 anos antes da Sala São Paulo). Além do auditório, foi fundamental a promulgação de uma lei estadual que obriga o poder público a destinar recursos para o evento e garantir sua execução.

Apesar disso tudo, Campos do Jordão nunca teve um ecossistema musical próprio (escolas de música, conservatório, orquestra, etc.), e desde sua primeira edição tanto sua parte artística, como a executiva, foi realizada por gente de fora que, uma vez ao ano, toma posse da cidade e faz o que tem que fazer. Ou seja, espetáculos para outras pessoas de fora, turistas, em geral, proprietários de casas de férias na cidade ou clientes de seus caros hotéis e pousadas. No final de cada mês de julho, todo mundo se manda e a cidade volta a sua precariedade de sempre.

No início da década – quando então, pela primeira vez, um jordanense foi enfim aceito como bolsista, quarenta anos (!) após a fundação do festival –, testemunhei um movimento que ambicionava mudar essa realidade. Qualquer plano nesse sentido envolve, obrigatoriamente, a fixação de uma estrutura que proporcione o desenvolvimento desse ecossistema.

Naquele momento a estratégia era construir ao lado do auditório outro equipamento, um misto de hospedaria e escola, que funcionaria como sede do festival, reduzindo assim os enormes custos que ele tinha com hospedagem e deslocamentos. E mais: planejava-se também um festival de verão, esse dedicado à música popular. E mais: que ao longo do ano funcionasse ali uma escola de música estadual, e assim seriam dados os primeiros passos da criação desse ecossistema que, enfim, integraria o festival à população da cidade.

Cheguei até a ir para a cerimônia de “inauguração da maquete” do projeto, que tal como outros da área (por exemplo, o já sepultado complexo artístico que seria construído em frente à Sala São Paulo), não passou de um punhado de papelão dobrado sobre uma tábua de madeira.

Esse movimento era, em parte, uma resposta à acusação, não de todo descabida, de que o festival era propositadamente elitista, exclusivista e excludente, potencializando os próprios vícios e estereótipos da música clássica como um todo. Ao Estado sempre caberá a clássica alegação de que não havia verba para isso, mas a essa altura do campeonato todo mundo já sabe que nunca houve uma vontade política e players fortes o suficiente para fazer o projeto vingar.

Concerto no Auditório Claudio Santoro, em Campos do Jordão [Divulgação]
Concerto no Auditório Claudio Santoro, em Campos do Jordão [Divulgação]

Fato é que, naquele momento, enquanto se gestava o natimorto projeto da sede do festival, adotou-se como estratégia de facilitação de acesso e democratização a realização de alguns de seus concertos na capital, mais precisamente, na Sala São Paulo. Houve quem aplaudisse, pois por pressuposto, parcela considerável da audiência clássica paulista reside na capital, e logo os custos de deslocamento e hospedagem para a Davos da Mantiqueira tornavam o festival bem restrito em termos econômicos. Além disso, a ação empregava melhor o dinheiro público ao aproveitar a presença na região de um determinado artista ou grupo (naquele momento o festival já assimilava a palavra “internacional” ao seu título). Mas houve quem reclamasse, em especial, membros da comunidade jordanense, talvez já pressentindo o esvaziamento que tal ação desencadearia. E ele de fato ocorreu.

Montar o festival foi sempre uma tarefa extremante trabalhosa e custosa. Trabalhosa porque, apesar de ter completado 50 anos, na prática o festival “não existe”. Explico-me: o festival não é uma instituição propriamente dita, e nunca teve uma estrutura própria. É uma obrigação que o Estado paulista delega a alguma de suas instituições culturais. No histórico executivo do festival constam instituições como o Conservatório de Tatuí, a então ULM (Universidade Livre de Música) e a Santa Marcelina Cultura, por exemplo, além da própria Fundação Osesp, seu atual gestor.

Ou seja, todos tinham que emigrar com parte considerável de sua estrutura física e de pessoal para Campos do Jordão, muitas vezes tendo que funcionar em regime de duplo expediente, uma vez que não podiam simplesmente fechar as portas de suas respectivas sedes. Longas horas na Via Dutra marcaram a vida de seus participantes e colaboradores, ainda mais quando lembramos de tempos em que não havia internet e mesmo uma chamada DDD era cara e racionada.

Se por natureza qualquer atividade artística tem seu preço, no contexto do festival ele se torna proibitivo, pois a ele soma-se uma pequena fortuna a ser aplicada em deslocamentos, aluguel de espaços para aulas, ensaios e escritórios, além de diárias em hotéis, pousadas e alojamentos, tudo isso em plena alta temporada de turismo. Fica então fácil dimensionar o quão alto são os custos mínimos do evento.

Uma vez que a “sede do festival” jamais saiu do papel, pouco tempo após a Osesp ter retomado a gestão do evento aproveitou-se a carona de que parte de sua programação artística era realizada em sua própria sede para ampliar a participação da Sala São Paulo no evento, que passou então a abrigar também suas atividades pedagógicas e parte substancial de sua atividade executiva.

Uma solução racional, ainda mais em um contexto de diminuição de verbas pela qual o evento tem passado ao longo dos anos. Além de mais econômico, agora essa parte do evento ficou até cômoda para seus gestores e alguns de seus professores. A isso soma-se o fato de que parte significativa de seus bolsistas são residentes da capital, e é natural que esses abram mão do alojamento em hotéis econômicos da capital destinados sobretudo àqueles que vêm de fora da Grande São Paulo. Como resultado final, tem-se a economia em uma série de frentes. Ainda que compreensível, a ação não é, necessariamente, louvável.

Por um lado, o rendimento artístico-pedagógico para os estudantes tende a ser no mínimo “diferente”, uma vez que nesse esquema cai por terra a lógica de imersão que apenas o isolamento literalmente geográfico de um grande centro urbano pode proporcionar. Apenas um exemplo: o famoso festival de Tanglewood, promovido pela Sinfônica de Boston (modelo para o próprio Festival de Campos), segue sendo realizado no interior do estado de Massachussets, e não na capital que batiza a famosa orquestra norte-americana.

Pelo outro lado, tal dinâmica distancia ainda mais o festival de sua terra mater e da comunidade jordanense. Atualmente, muito pouco justifica o nome da cidade no título do evento, na prática um “Festival Paulista de Música”.
Creio ser legítimo, e muitas vezes necessário, pensar e repensar tradições e certos status quo. Isto posto, coloco no ar duas perguntas, antagônicas entre si: Será que é mesmo hora de desistirmos de Campos do Jordão? Ou então, já não é hora de desistirmos de Campos do Jordão?

Em geral, as próprias autoridades e outros tipos de agentes da sociedade local (políticos, empresários, setor imobiliário, etc.) lutam pelo festival apenas por seu atrativo turístico-econômico, tal como ficou provado na recente coletiva de imprensa convocada pelos organizadores para a realização do balanço dessa edição, na qual foi divulgada uma pesquisa de impacto econômico realizada pela FGV. Evidentemente, compreendo e defendo a sustentabilidade econômica de todo empreendimento cultural. Ainda assim, penso que existe um equívoco fundamental na lógica como esses investimentos são realizados, isto é, quase que exclusivamente como injeção de verba estadual numa única cidade, um dinheiro que irriga apenas sua superfície turística, com quase nenhum impacto em seu subsolo sociocultural.

Jamais ocorreu de forma consistente e eficiente (está aí a realidade para não me deixar mentir) uma atuação para que o festival pudesse ser também (reforço aí o “também”) um agente de transformação e bem-estar social, justamente, a partir do desenvolvimento de um ecossistema sustentável – a partir de uma instituição independente, uma “Fundação Festival de Campos de Jordão”, quem sabe? –, que atue como pivô de um ciclo virtuoso de desenvolvimento social, econômico e artístico em uma cidade que, apesar da fachada de glamour, padece com a pobreza e a miséria em sua periferias e favelas, uma população que raramente consegue usufruir da programação do próprio festival (por exemplo, ainda que se tenha um ingresso gratuito, tente chegar e sair de transporte público a um concerto noturno do Auditório Claudio Santoro e depois me conte como foi a experiência).

Penso que se nada de efetivo for realizado nesse sentido, muito em breve nada justificará o nome da cidade como título do festival. E se o poder público de fato assumir que não se trata mais de um evento jordanense, mas sim de um “festival paulista”, que se faça dessa guinada de rumo uma oportunidade para, de fato, promover a educação e a cultura artístico-musical por todo o estado de São Paulo.

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Apresentação na Praça do Capivari, em Campos do Jordão [Divulgação]
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