Texto de Lauro Machado Coelho publicado na edição de setembro de 2005 da Revista CONCERTO
Inicialmente, Michel Carré e Eugêne Cormon queriam ambientar o libreto dos Pêcheurs de Perles nos Estados Unidos. Depois, optaram pelo Ceilão, devido à popularidade da moda de orientalismo iniciada, anos antes, pela Africaine, de Meyerbeer. A crítica reagiu mal aos Pescadores de Pérolas, estreada no Théâtre Lyrique, em 30 de setembro de 1863, acusando Georges Bizet de fazer concessões demasiadas a Wagner e a Verdi. O libreto, dando tratamento muito superficial aos conflitos de Leila entre o amor e a religião, de Nadir entre o amor e a amizade, e de Zurga entre o ciúme e a nobreza de espírito, é do tipo que enfatiza as situações de efeito em detrimento da prospecção psicológica, deixando, assim, em segundo plano o que mais convinha ao tipo de talento de Bizet: o estudo das emoções humanas e os choques entre sentimentos antagônicos.
Bizet usa motivos recorrentes para dar unidade à partitura: o tema de Leila, enunciado no início do Prelúdio; ou o do dueto Au fond du temple saint (Zurga-Nadir), que volta sempre que se fala da amizade que os une. Mas essas melodias ainda não têm a força elementar e a maleabilidade que um motivo recorrente precisa ter para adaptar-se a vários contextos diferentes. Isso, contudo, não impede a ópera de ter vários momentos de melodismo cativante, onde já está claramente prefigurada a força que Bizet atingirá na maturidade. Além de ser muito elegante o Prelúdio, cada personagem tem uma página marcante. Árias como De mon amie, de Nadir, a cavatina de Leila, Comme autrefois, ou o dueto de Zurga e Nadir, Au fond du temple saint, justificam plenamente a estima que o público tem hoje pela ópera.
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Um lugar especial deve ser reservado à ária mais famosa da ópera, Je crois entendre encore. Além da melodia inesquecível e da refinada orquestração, ela prefigura a Carmen: o pianissimo no si maior agudo com que Nadir fala de sua paixão .por Leila será repetido no si bemol maior em pianissimo com que, mais tarde, Don José confessará, na Ária da flor, o seu amor obsessivo pela cigana. Mas ainda é pouco original a escrita das cenas corais e de conjunto, onde é muito visível a influência de Gounod e do Verdi da fase intermediária.
Nos Pescadores, já aparece um recurso que Bizet vai usar, com muita felicidade, na Djamileh e na Carmen, e que é um maneirismo herdado de Félicien David: o uso de um pedal, ou de um ritmo ostinato, para sugerir a atmosfera exótica ou para criar tensão em momentos de crise. No ato II, por exemplo, esse pedal surge depois que Nourabad adverte Leila que ela está perto de violar o seu juramento; e emoldura também a entrada de Zurga, no ato III. Por outro lado, já está também presente, nesta ópera, em trechos como o do primeiro encontro de Leila com Nadir, o tipo de recitativo melódico muito flexível que Bizet utilizará em momentos fundamentais da Carmen: a Séguidille; o diálogo entre a cigana e Don José que precede a Ária da flor; a cena da leitura das cartas ou o dueto final.
A instrumentação, multo variada, com evidentes influências tanto de Meyerbeer quanto do Wagner jovem, recebeu muitas críticas na época: houve quem chamasse a ópera de "um fortíssimo em três atos". Para os ouvidos contemporâneos, aos quais a música dos Pescadores soa transparente e elegante, parece estranho que os contemporâneos do compositor achassem pesado o recurso de fazer dobrar a voz pelos violoncelos e fagotes, sobre um trernolo de cordas, na ária de Nadir Des savanes et des forêts. De um modo geral, Les Pêcheurs de Perles já deixa perceber, com muita clareza, o senso de colorido e de combinação de timbres instrumentais que Bizet exibirá em sua obra madura.
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