O compositor brasileiro Ernst Mahle morreu na noite de segunda-feira, dia 12, aos 96 anos. Ele estava internado no Hospital Unimed, em Piracicaba, mas a causa da morte não foi divulgada. Nascido em Stuttgart, na Alemanha, Mahle mudou-se ao Brasil com a família em 1951, aos 22 anos. Em 1962 naturalizou-se brasileiro e aqui desenvolveu toda sua trajetória, ajudando a formar gerações de grandes músicos e atuando como prolífico compositor, autor de um catálogo que ultrapassa 2 mil obras.
Mahle estudou no Conservatório Dramático Musical de São Paulo e na Escola Livre de Música Pró-Arte, com Hans-Joachim Koellreutter. Ali também conheceu a sua futura esposa e companheira de toda vida, M. Apparecida Romero Pinto, a Cidinha, que era aluna de regência de Koellreutter. Em sua formação, também frequentou cursos internacionais de férias em Lucerna (Suíça), Darmstadt (Alemanha) e Salzburgo (Áustria), onde foi aluno de Olivier Messiaen, Wolfgang Fortner e Ernest Krenek. Estudou também regência com L. von Matacic, Rafael Kubelik e Mueller-Kray.
Em 1953, junto com Cidinha, Koellreutter e outros, fundou a Pró-Arte de Piracicaba, hoje Escola de Música de Piracicaba Maestro Ernst Mahle, Empem, pertencente ao Instituto Educacional Piracicabano da Igreja Metodista. Ali exerceu, durante mais de mais de 50 anos, as funções de diretor artístico, professor e maestro.
Mahle relembrou o início de sua relação com a música, ainda na Alemanha, em entrevista concedida a Luiz S. Kraus e publicada na edição de janeiro/fevereiro de 1999 da Revista CONCERTO. “Na Europa, só estudei flauta doce, no primeiro grau. De tradicional família de engenheiros, era esperado que eu seguisse a mesma profissão. Tivemos também problemas com a guerra. Nos mudamos da Alemanha para a Áustria e foi nesse país que eu terminei o colegial. Minha vocação musical emergiu tarde e me precipitei para recuperar o tempo perdido, querendo tornar-me pianista da noite para o dia: consegui uma irreparável tendinite. Resolvi, então, partir para a composição. Ingressei no Conservatório de Stuttgart, na classe do Prof. Nepomuk David”, contou.
A família mudou-se para o Brasil em 1951. “Chegamos de navio, minha mãe, meu pai, dois irmãos e eu, trazendo piano de cauda e até nosso cachorro pastor alemão. Só ficou minha irmã casada, na Áustria. No início moramos numa pensão, até nos estabelecermos numa casa, no Brooklin”, lembrou. Meu pai foi um dos fundadores da Metal Leve. Quando vim, ainda não sabia ao certo se iria me dedicar à música ou à engenharia. Mas meu pai insistiu que, se eu desejasse mesmo estudar música, procurasse uma escola em São Paulo. Passei a frequentar o Conservatório Dramático e Musical da Rua São João. Mas, em 1952, começou a funcionar a Pró-Arte – Escola Livre de Música e iniciei estudos com H.J. Koellreutter, cuja influência foi grande, a fim de que eu definisse minha vocação. Quando, em 1953, foi cogitada a fundação de uma ‘sucursal’ da Pró-Arte em Piracicaba, meu nome foi pensado para diretor, cargo que acabei exercendo até hoje. Mas, durante minha formação, voltei várias vezes para a Europa e frequentei cursos com professores como Messiaen, Fortner e Krenek.”
Mahle se lembrava do ambiente musical que encontrou ao chegar a São Paulo. “O ambiente musical era bom. Ouvi, no Teatro Cultura Artística, Walter Gieseking, Andrés Segovia e Paul Hindemith regendo. No Municipal pude ouvir Rubinstein. A Sociedade Bach, com D. Tatiana e o Monsenhor Braunweiser, era muito ativa. Mas naturalmente a Pró-Arte, sob direção de Koellreutter, que sempre teve o dom pessoal de se rodear de ótimos e talentosos alunos, florescia e irradiava um belo movimento, imprimindo um ar de renovação, especialmente no âmbito pedagógico.”
E foi no contexto pedagógico que ele deu os primeiros passos na composição. “Considero estas atividades, de compositor e professor, estritamente ligadas e acho ambas igualmente importantes. Comecei a escrever música de início para alunos e fui me desenvolvendo a partir daí. Meu contato com crianças, jovens, seus professores e maestros me proporcionam inspiração e vontade de prosseguir em meu trabalho", disse à CONCERTO.
O verbete sobre Mahle na Enciclopédia Itaú Cultural mostra como, naquele momento, “em Mahle, é impossível separar a carreira didática da composicional”. “Atreladas à experiência profissional e humana do artista, ambas marcam as mais de cinco décadas de dedicação à Escola de Música de Piracicaba (EMP)”, diz o texto, que também ajuda a situar uma dicotomia que então se dá do ponto de vista estético. “Durante os anos 1950, período no qual Mahle é aluno de Koellreutter e professor da EMP, a face pedagógica traz um estilo tradicionalista neoclássico, fruto do trabalho com o compositor Johann Nepomuk David. Já na face artística identificam-se tendências experimentais mais modernas e universalistas, seguindo a influência de Koellreutter. Exemplos dessa vanguarda podem ser ouvidos em obras como as Sete peças sobre uma ou duas notas só (1954), Intervalos (1960), Trio para flauta, violino e piano (1952) ou Quatro estudos para flauta (1953).”
No final dos anos 1960, essa dicotomia começa a desaparecer à medida em que ele começa a desenvolver repertório específico para as crianças, além de repertório solista e camerístico para cada um dos instrumentos ensinados na escola. Ele escreve algumas das primeiras peças brasileiras para estudantes de violino, flauta, violoncelo, contrabaixo e praticamente todos os instrumentos orquestrais. Nelas, o folclore, as formas clássicas e a elaboração temática tradicionais seu articulam para facilitar a assimilação pelos alunos, o que confere ao compositor a denominação de neoclássico. “Dá se um processo em que didática e estética acabam por fundir-se, em um contexto no qual “a composição e o ensino impõem, um ao outro, suas necessidades e limites”, como afirma Guilherme Sauerbronn Barros em seu estudo sobre o compositor, de 2005, no qual cita que o compositor vai definir esse resultado, em termos estéticos, como “um meio termo entre a vanguarda e o tradicional”.
“No começo, eu me julgava apenas um professor; então, quando os alunos progrediam, comecei a escrever sonatinas e concertinos. Eu me esforcei para criar um repertório moderno para os alunos, partindo de simples arranjos folclóricos e aumentando gradualmente a dificuldade. Eu não me considerava compositor, até que músicos profissionais começaram a executar e gravar as obras que eu havia escrito para os alunos”, contou ele à CONCERTO em 2017.
Mahle escreveu as óperas Maroquinhas Fru-Fru, (1974), com libreto de Maria Clara Machado; A Moreninha (1979), com libreto de José Maria Ferreira; O Garatuja (2006), com libreto de Eugénio Leandro, e Isaura (2022), com libreto de Marcelo Batuíra. Ocupava a cadeira nº 6 da Academia Brasileira de Música, que tem Sigismund Neukomm como patrono e Antônio Garcia de Miranda Neto com fundador.
Em seu catálogo, destacam-se peças para as mais diferentes formações. O Diálogo para vIolão e cordas, de 1971, é “profunda, meditada, muito construída em sua alternância dos solos de violão e da participação dos arcos”, como a definiu o historiador Jorge Coli. Na série Viajando pelo Brasil (1997), pela qual tinha especial apreço, ele reuniu melodias de 20 Estados brasileiros, distribuídas em três suítes que podem ser tocadas na sequência, correspondendo a uma viagem de um Estado para o outro.
O compositor também dava importância especial ao Salmo 148, criado em 1970 para três diferentes formações: coro e orquestra de cordas, coro e orquestra sinfônica, e coro, orquestra de cordas e órgão. Em uma entrevista, ela afirmou que, ao presenciar a sinfônica executando a música, teve pela primeira vez o sentimento de que “a música tem a capacidade de unir as pessoas e transmitir paz e harmonia”. “Eu tive a sensação de que eu vim a este mundo para fazer música”, disse. Ainda no universo da música sacra, em 1976, ele criaria a Missa de São Francisco.
Entre os concertos, há peças para flauta (1957), violoncelo (1958), piano (1974), violino (1978), trombone (1983), clarineta (1988) e contrabaixo (1990), viola (2015), violino e viola (2017), fagote (2020), frequentemente executados. Para orquestra de cordas, Mahle escreveu diversas obras que se encontram entre as mais tocadas do repertório brasileiro como a Suíte Nordestina (1976), a Sinfonietta (1978) e o Divertimento Hexatonal (1983). Na música de câmara, há sonatas, sonatinas, duos e trios para diferentes instrumentos, além de dezenas de canções que entraram para o repertório de artistas brasileiros dedicados a esse repertório.
Ao ser chamado de dr. Mahle, ele costumava corrigir o interlocutor: “Não sou doutor, este era meu pai. Mas mais de vinte pessoas já fizeram doutorado sobre a minha música”, brincava. “Minha maior satisfação é ouvir meus ex-alunos que se tornaram excelentes profissionais. Eles voltam para me visitar, lembrando os velhos tempos e se queixando da atualidade. Concordamos que estamos remando contra a maré. Mas, mesmo assim, achamos que vale a pena.”
![Ernst Mahle [Divulgação/Rodrigo Alves]](/sites/default/files/inline-images/w-Ernst-Mahle-tem-88-anos_foto-Rodrigo-Alves_0.jpg)
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