Por Filipe Gaspar*
No passado dia 17 de setembro, o encenador americano Peter Sellars conversou com os participantes na Academia de Ópera 2021 da Fundação Clóvis Salgado (Minas Gerais). Um dos mais influentes criadores do panorama operístico e teatral contemporâneo, Sellars tem-se mantido fiel ao desígnio que reivindica político e, sobretudo ético, de trazer o cotidiano ao palco, dando voz às crises mais prementes vividas pela Humanidade dos dias de hoje.
Sua presença junta-se à do prestigiado painel nacional e internacional de palestrantes convidados pela Academia, cujo principal objetivo é dotar os formandos de competências básicas para a criação, produção e, inclusive, recepção do espetáculo de ópera. E Sellars não defraudou as expectativas. Tanto o conteúdo de sua fala, quanto o tom caloroso e informal que manteve durante toda a conversa online, foram eloquentes na defesa da sua premissa de que o espetáculo não pode senão ser “escutado com os ouvidos de hoje”.
Confrontado com a paráfrase de Theodor Adorno quanto à possibilidade de se criar Arte depois, já não da barbárie de Auschwitz, mas agora da catástrofe causada pela pandemia de Covid-19, respondeu reformulando outra vez a mesma ideia: “Como produzir arte depois de um anúncio publicitário explorar emoções humanas como forma de lucro?”. Sellars é humilde ao afirmar-se incapaz de tratar artisticamente o Holocausto sem que a dimensão e o significado de um tal facto histórico sejam diminuídos pelo resultado artístico. Em alternativa, aponta para a simplicidade de uma verdade já estafada: a condição do artista é a atenção permanente e, amiúde, silente aos “significados mais profundos do cotidiano”. Seu papel é criar espaço e tempo para a expressão das emoções humanas e vislumbrar as “possibilidades posteriores ao desastre”.
Para ele, um dos grandes desafios de hoje é veicular o luto de uma Humanidade confrontada com a perda de um incomensurável número de vidas, assim como com os diversos tipos de desigualdades que a pandemia veio desvelar. Neste sentido, insiste que a obra de arte pode ser a forma de dar visibilidade e de externar a vivência dessa experiência.
Uma afirmação de Sellars sintetizou a consistência do seu posicionamento ao longo de quase cinquenta anos de carreira: “Não enceno Mozart no século XVIII, porque Mozart estava falando conosco!”. Ao dizê-lo, o encenador radica sua produção nas diversas profundidades do realismo, precisamente para, através de uma interpretação o mais clara possível, desafiar seus interlocutores – dos colaboradores aos públicos – a pensar suas realidades de vida, seus lugares no mundo, sua existência.
A conversa ultrapassou as duas horas inicialmente previstas, por insistência do próprio Peter Sellars, que reiterou, mais de uma vez, ter “reservado a tarde para a partilhar com os participantes da Academia” e que essa mesma partilha o “deixava muito feliz”. O encontro acabou extravasando a vocação formativa do evento, com a cumplicidade emotiva gerada pelas palavras de Sellars, chegando a comover muitos dos ouvintes. Nada que tenha ido contra o que vinha sendo afirmado pela curadoria da Academia – a cargo do maestro Gabriel Rhein-Schirato e da encenadora Livia Sabag – como um dos principais objetivos da iniciativa: fomentar a inspiração dos quarenta e dois participantes inscritos.
* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio
![Peter Sellars durante conversa com os alunos do Ateliê de Criação [Reprodução]](/sites/default/files/inline-images/sellars_3.jpeg)
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