“O intérprete é um bom exemplo do fato de que seres humanos são feitos de contradições. Toca para o compositor e para o público. Deve ter uma visão panorâmica de toda a peça e, ao mesmo tempo, fazê-la surgir do instante. Ele domina e esquece a si mesmo. Toca para ele e para o último rincão da sala. Impressiona por sua presença e se dissolve na música. É um soberano e um servo. É um convertido e um crítico, um crente e um cético.”
Quem oferece essa visão do intérprete é o pianista Alfred Brendel, no livro De A a Z de um pianista. Nele, escreve também que “a arte da interpretação é como uma sala de espelhos que deformam a imagem". “Um quadro, uma escultura, um romance, eles existem. Podemos examinar um objeto, dar a volta em uma escultura, ler o livro. Também de pode ler partituras e escutar mentalmente à música quando a lemos, mas uma minoria é capaz disso. Alguns intérpretes opinam que a música só ganha vida quando é tocada. Não, ela já vive na partitura, mas dorme. O intérprete tem o privilégio de fazê-la despertar ou, para colocar de uma maneira carinhosa, trazê-la à vida com um beijo.”
Brendel não era apenas pianista. Também escrevia. Na juventude, pintava. Nesses breves trechos, une as facetas múltiplas. O texto está repleto de imagens, que iluminam o pianista nesse pedaço entre silêncio e vida. E nesse pedaço o pianista alemão construiu um mundo em forma de música. Em 2008, afastou-se do palco, em especial por conta de um problema nas costas. O silêncio, que era incômodo, agora é definitivo. Brendel morreu ontem, aos 94 anos, em Londres. Falar na imensidão de seu legado é uma obviedade.
Alfred Brendel nasceu em 1931 em Wiesenberg, na então Checoslováquia, mas cresceu na Áustria. Começou a estudar piano ainda criança, mas a ideia de se tornar um pianista profissional só viria aos 13 ou 14 anos, depois de se convencer do que considerava a falta de talento para ser pintor. Sua formação foi essencialmente autodidata, como ele lembrou em uma entrevista à revista Gramophone em 1969. “Eu não tive professores com quem trabalhei de maneira regular. Extraía minha inspiração dos concertos que assistia ou de masterclasses. Acredito que, quando você se transforma proficiente nos rudimentos de uma forma de arte, passa a ser fundamental ouvir o máximo possível.” Não para copiar, é claro, mas para compreender como se dá essa relação tão tênue entre intérprete e interpretado.
A carreira como pianista também escanteou o trabalho como compositor. Ao menos até certo sentido. “É uma sugestão que dou a todo intérprete mais jovem que conheço, caso me perguntem o que devem fazer. A primeira pergunta é: você compõe? Você tem um bom conhecimento de composição? Ajuda ter pelo menos um primeiro grau de sensibilidade para saber como uma peça se articula e por que ela se articula; então, gradualmente, ao lidar com obras-primas, você passa a descobrir por que certas peças são diferentes de outras e como as obras-primas de um mesmo compositor são diferentes. Elas não seriam obras-primas de outra forma. Elas contribuem com algo que o compositor não fez em nenhum outro lugar. Caracterizá-las, descobrir essa diferença, é uma das maravilhosas tarefas do intérprete – não ter uma abordagem estereotipada do que o compositor fez, mas, dentro do vasto universo de um grande compositor, definir essas peças”, explicou em uma entrevista de 1991.
Noções como essa fizeram com que muitas vezes ele fosse considerado um pianista preocupado de maneira excessiva com a forma, em sacrifício da expressão. Ao New York Times, ele comentou a acusação. “Eu nunca pertenci a nenhum clube, não acredito em escolas de interpretação pianística e não tenho um regime técnico. Apenas a peça que você está tocando pode dizer a você sobre os problemas técnicos que carrega.” Sobre isso, ele também escreve em De A a Z de um pianista. “Forma e caráter (sentimento, psicologia, atmosfera, expressão, afetos etc.) não são gêmeos idênticos. A forma e a estrutura de uma peça musical são visíveis, verificáveis na partitura escrita pelo compositor. O outro gêmeo só podemos experimentar. O fato de que a forma pode ser verificada nos induz a subordiná-la a seu irmão gêmeo. É relativamente simples analisar uma composição a partir do texto. Mais difícil é sentir a forma, e ainda mais difícil é adentrar a psicologia de uma obra.”
E, no entanto, foi a essa tarefa que ele dedicou sua vida. Um recital no início dos anos 1960 em Londres abriu o caminho para a carreira que viria construir: uma intensa agenda de concertos, os primeiros contratos com gravadoras, a relação com agentes e empresários. Sua visão sobre o repertório estava ligada às suas origens como um homem “que nasceu e cresceu como um homem da Europa ocidental, tendo à sua volta um passado musical característico”. Ainda que tenha gravado a obra de Bach, em sua trajetória tal linhagem começava em Haydn e Mozart, indo até Schoenberg, passando por Beethoven, Schubert, Schumann e Brahms. A eles dedicou a imensa maioria de suas gravações (ainda que haja nesse conjunto curiosidades, como pedaços de música russa, em especial Mussorgsky, Balakirev e Stravinsky).
Mas a relação com esses autores não era de submissão. Nas escolhas que fazia, também definia sua percepção a respeito do mundo interior de uma peça. “É preciso saber os limites dentro dos quais uma peça faz sentido. Uma obra é como um personagem em uma peça ou, às vezes, como a interação entre diferentes personagens de uma peça. Esse personagem, ou personagens, só fazem sentido dentro de suas possibilidades. Se você se afasta desse espaço, se aproxima do nonsense. Agora, dentro dessas possibilidades, há bastante margem de manobra, ainda que em algumas obras muito mais do que em outras. Há também obras em que você precisa se aproximar exatamente de um ponto particular e sensível para que elas possam soar convincentes.”
Beethoven se impunha. Gravou o ciclo completo dos concertos duas vezes, assim como fez com as 32 sonatas. “Elas formam um todo integrado na medida em que cada uma delas é diferente. Cada uma das sonatas importa, cada sonata é uma obra-prima.” O mesmo não valia para Haydn ou Mozart, afirmava. De Mozart, preferiu gravar a integral dos concertos para piano. E defendia a percepção de que havia mais variedade de atmosferas em sua obra do que se costumava afirmar. “Mozart podia ser profundamente pessimista. Suas obras em tons menores são alguns dos monólogos mais desolados que conheço na história da música. Mozart tinha todas essas dimensões, e acho que seria simplificá-lo se o colocássemos em uma gaveta.”
De Brahms, foi abandonando as peças para piano solo e, nos últimos anos, concentrou-se nos concertos para piano e orquestra. De Schubert, deixou registros dilacerantes das últimas sonatas. Via o compositor de uma maneira particular. “A música de Schubert simplesmente acontece. Os eventos não se desenvolvem com uma lógica graciosa ou sinistra. Eles poderiam, em diversos pontos, seguir em direções diferentes. Ao tocá-la, não é possível se sentir no controle mas, sim, como vítimas daquela situação.”
Com Schubert, por sinal, deixou as poucas colaborações na música de câmara – e o fez nas canções. Os registros com Dietrich Fischer-Dieskau são elegantes, sóbrios. Décadas mais tarde, no seu Winterreise com Mathias Goerne, ao vivo no Wigmore Hall, não acompanha a voz, dá a ela sentido. A gravação, escreveu um crítico, mostra que o tempo não se refere à velocidade. É, acima de tudo, uma medida de intensidade.
Tempo. Em sua formulação, havia três maneiras de compreendê-lo. O tempo do metrônomo, o tempo psicológico, o tempo do improviso. “No tempo psicológico, as mudanças de tempo devem soar tão naturais de forma a nos dar a impressão de que uma peça está sempre no tempo correto.”
Tempo. “Há extremistas do tempo, tocam as passagens mais rápidas ainda mais rápidas, as mais lentas, ainda mais lentas. Há os extremistas do volume, que entendem a música pela oposição entre o mais forte e o mais baixo”, escreveu. Mas a arte não está nesses extremos. “Está no espaço intermediário, onde toda a variedade dinâmica está de fato disponível. É só assim que um intérprete pode dar à música a oportunidade de elevar-se por cima da superfície da terra, de aspirar pelas alturas, de flutuar.”
É possível falar em emoção a partir da ideia de equilíbrio, “o traço mais característico do som”? Apenas na medida em que há ordem no caos. Emocionar-se, como intérprete, é possível apenas quando se é capaz de manter o controle. De volta ao começo. “O intérprete é um bom exemplo do fato de que seres humanos são feitos de contradições.” Ao piano, poucos nos mostraram isso com tanta clareza quanto Brendel.
![O pianista Alfred Brendel [Divulgação/Calle Hesslefors/Decca]](/sites/default/files/inline-images/w-brendel.jpg)
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