András Schiff na Sala São Paulo: de Bach viemos, a Bach voltaremos

Se o culto a Bach é uma religião musical, o pianista magiar András Schiff é um de seus sacerdotes supremos – e, na quarta-feira, dia 13, na série da Sociedade de Cultura Artística, transformou a Sala São Paulo em templo bachiano.

Não há religião sem mistérios, e Padre Schiff optou pelo voto de silêncio, recusando-se a anunciar previamente o repertório de suas apresentações. Porém, quando reconhecemos que a peça de abertura era uma das mais deslumbrantes introduções do repertório – a Ária das Variações Goldberg, de Bach, executada com transparência e singeleza –, parecia claro o tipo de experiência encantatória que teríamos pela frente.

O oficiante da noite então pegou o microfone, pediu desculpas por não dominar o português e, em um inglês com forte sotaque da Europa Central, declarou que Bach era o maior de todos os compositores, e que não começava um dia de sua vida sem ele. Em seguida, fez uma rara escolha de repertório: o Capriccio sopra la lontananza del suo fratello dilettissimo, que Bach teria composto aos 19 anos, quando da partida de um irmão para o exército. Se a anedota é hoje questionada, a interpretação de Schiff é das mais seguras: sua entrega límpida do contraponto e a clareza com que ele executa cada uma uma de suas linhas são simplesmente um assombro.

O pianista tomou novamente a palavra para dizer que, depois de Bach, viria um compositor que aprendeu com ele: Brahms. E manipulou com meticulosidade de ourives cada uma das joias que são os três Intermezzi Op. 117 do compositor alemão, revelando as belezas de cada um dos detalhes urdidos por uma mente musical profunda e amadurecida. Se as religiões não podem prescindir de hereges, este aqui deve confessar, porém, que preferiria uma interpretação um tiquinho mais “sentida” e menos “objetiva” do Intermezzo Op. 118 nº 2.

O pregador Schiff então anunciou Schumann como “mentor de Brahms” e, obviamente, sublinhou sua ligação com a cidade bachiana de Leipzig. A escolha recaiu sobre Davidsbündlertänze, ou seja, as Danças da Liga de Davi, sociedade musical criada por Schumann em seus escritos. Mais do que danças, trata-se de 18 peças curtas, opondo Florestan e Eusebius, os heterônimos que ele criou para denominar, respectivamente, os aspectos extrovertido e introvertido de sua personalidade. Schiff explicou que a obra termina com o triunfo de Eusebius, algo que se refletiu plenamente em sua execução: caracterizando com muito gosto cada uma das pequenas seções da obra, o pianista cultiva um refinamento apolíneo que parece extremamente adequado ao temperamento deste personagem.

Depois do intervalo, Schiff disse que tocaria três obras em ré menor. E começou, obviamente com Bach, unindo eloquência retórica, rigor estrutural e sonoridade cristalina em uma memorável Fantasia cromática e fuga. Depois ele explicou que Mendelssohn foi o responsável pelo resgate de Bach ao reger a Paixão segundo São Mateus, em 1829, e trouxe todo o vigor das Variações sérias, onde soube aliar as demandas de um som robusto à inteligibilidade contrapontística. A forma variação parece combinar muito bem com a meticulosidade preciosista de Schiff, que parece se esbaldar no esmiuçamento de detalhes e na exploração de contrastes. Difícil imaginar o compositor sendo melhor servido.

Bem, as Variações sérias foram escritas para uma campanha de crowdfunding feita no século XIX, em prol da construção, em Bonn, de um monumento a Beethoven. Na Bíblia particular de Schiff, se Bach é o Velho Testamento, Beethoven é o Novo. Ficaram famosas as conferências dadas pelo pianista sobre as sonatas do compositor alemão, e tivemos um pequeno gosto delas no palco da Sala São Paulo. Pois ele não se contentou em apenas anunciar a Sonata Tempestade, como ainda declarou que seu último movimento, Allegretto, normalmente é tocado rápido demais.

E que Tempestade foi essa! O Beethoven do evangelista Schiff é tão arrebatador e envolvente que mesmo sua para lá de heterodoxa escolha de tempo para o movimento final fez sentido – dentro desse contexto. Parece duvidoso que o experimento possa ou deva ser replicado por outros pianistas, em condições distintas de temperatura e pressão.

Após aplausos insistentes e veementes do público que superlotava a Sala São Paulo, Schiff permitiu-se voltar ao palco e tocar um delicioso primeiro movimento do Concerto italiano. A mensagem não poderia ser mais clara: de Bach viemos, a Bach voltaremos. Amém!

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O pianista András Schiff durante recital na Sala São Paulo [Divulgação/Cultura Artística]
O pianista András Schiff durante recital na Sala São Paulo [Divulgação/Cultura Artística]

 

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Comentários

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Foi um concerto exraordinariament maravilhoso! Com hungara fiquei muito emcionada e orgulhosa. Obrigada András Schiff e obrigada Cultura Artistica. Obrigada Irineu pela bela critica cuja leitura foi muito prazerosa tambem

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