Ótimo espetáculo abre décima edição do Festival de Música do Espírito Santo

por Nelson Rubens Kunze 06/11/2022

Ciclo de canções de Marcus Siqueira e ópera de André Mehmari compõem programa de alto nível artístico

VITÓRIA (ES) – Aconteceu na sexta-feira, dia 4 de novembro, no Teatro Sesc Glória, em Vitória, a abertura da 10ª edição do Festival de Música Erudita do Espírito Santo. Sob direção do maestro Gabriel Rhein-Schirato, uma pequena orquestra formada pelos músicos da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo ocupou as primeiras fileiras da plateia, como um fosso improvisado. Sobre o palco, duas criações especialmente encomendadas pelo Festival e encenadas por Livia Sabag, diretora cênica e diretora artística desta edição do evento: o ciclo de canções O tempo e o mar, de Marcus Siqueira (nascido em 1974), e a ópera A procura da flor, de André Mehmari (nascido em 1977). 

A obra O tempo e o mar, quatro canções acompanhadas por orquestra escrita sobre poemas de Geraldo Carneiro, abriu a noite. A seleção dos textos foi feita por Livia Sabag, e o que os une é a temática existencial em torno da inevitabilidade da passagem do tempo em livres associações com o mar. Um mastro na diagonal, no fundo do palco, e grossas cordas marítimas dominam a imagem de diversas cenas, sugerindo a viagem em busca de um cais meio abstrato e inalcançável. A encenação teve também a participação de dois bailarinos, Elidio Neto e Ricardo Reis.

E não poderia ser mais apropriada a música criada por Siqueira, que, extrapolando a tonalidade e com um refinado artesanato composicional, dialoga com o texto de modo muito emocionante. A escrita é transparente, algumas vezes pontilhada, outras com acordes dissonantes suspensos, mas sempre com grande concentração. Há também passagens de vigor rítmico e outras, de grande efeito, em que os músicos da orquestra interagem falando. Com rara maestria, Siqueira cria uma trama sonora em perfeita combinação com a voz solista.

A soprano Eliane Coelho mais uma vez magnetizou a plateia com sua forte presença e interpretação intensa. Na canção final, entoando um vocalise, Eliane faz evoluções com um véu branco, junto com os bailarinos, em cena de grande impacto.

Ainda que tenha sido enriquecida pela encenação e a participação dos bailarinos, a música dessa viagem dramática – introspectiva e meditativa – se sustenta por si, especialmente em uma interpretação tão poderosa como a oferecida por Eliane Coelho. 

Seguiu-se a ópera A procura da flor, de André Mehmari. A obra é baseada no romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, em que o autor traça um amplo panorama do Brasil político e social dos fins do século 19 por meio da história de dois irmãos gêmeos – muito diferentes entre si, um é monarquista, o outro republicano –, que disputam o amor de uma mesma mulher, Flora. O libreto foi elaborado por Geraldo Carneiro.

Com a ópera, Mehmari – campeão absoluto de encomendas da música clássica nacional – novamente demonstra sua impressionante musicalidade e absoluto domínio da escrita musical. Com um estilo difícil de classificar – ouve-se desde melodias do cancioneiro brasileiro, passando por invenções motívicas próprias da música barroca, por fraseados clássicos, até trechos que soam o romantismo do século XIX –, as ideias musicais de Mehmari, vazadas na linguagem tonal, encadeiam-se organicamente para formar um todo muito consistente. Na partitura, Mehmari costura interlúdios, duetos e árias com grande competência, mas, mais do que isso, logra uma narração musical com as tensões e distensões da teatralidade. Assim, por exemplo, é de grande efeito dramático o desenvolvimento que leva à primeira grande ária da ópera, quando Flora entra em cena. Para isso, além da inspirada melodia, colaborou uma bela e impactante solução cênica com Flora trajando um imenso vestido que é agitado como ondas do mar...

Também aqui a direção cênica coube a Livia Sabag, que se utilizou dos mesmos elementos da primeira parte: cordas dependuradas delimitavam espaços, e mesas eram deslocadas propondo novos ambientes e dando dinâmica à encenação.

Foram muito bem os solistas Daniel Umbelino, como Pedro, e Johnny França, como Paulo, vozes respectivamente de tenor e de barítono, ambos de belo timbre e projeção. A soprano Isabella Luchi, que fez Flora, exibiu bonita voz e protagonizou alguns dos momentos emocionantes do espetáculo. Igualmente boas foram as intervenções de Sylvia Klein (narradora), Luciana Bueno (mãe) e Sávio Sperandio (Caboclo). E a soprano Natércia Lopes, importante personalidade da música capixaba, fez o papel de Custódia.

Talvez um único porém em uma obra no todo muito feliz, e ele se refere ao libreto. Ao realçar o papel da mãe que busca o entendimento entre os gêmeos, Geraldo Carneiro não deixa muito claro se é mesmo a disputa amorosa por Flora a trama central da narrativa. Com isso, o final que a ópera propõe – a mãe confortada pelo abraço dos dois irmãos que, com a morte de Flora, finalmente se conciliam –, resulta um pouco simples (e inconclusivo) diante do triângulo amoroso e a disputa travada entre os gêmeos. 

Vale ainda destacar a performance dos músicos da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo, que, conduzidos com competência por Gabriel Rhein-Schirato, souberam dar o devido caráter para cada uma das obras.

Foi, no geral, um ótimo espetáculo, em que duas criações de formato e proposta artística muito diferentes concorreram para um resultado de alto nível artístico. 

A abertura do 10º Festival de Música Erudita do Espírito Santo foi gravada e pode ser assistida neste link.

[Nelson Rubens Kunze viajou à Vitória e assistiu à abertura do 10º Festival de Música Erudita do Espírito Santo a convite da Coes, Companhia de Ópera do Espírito Santo.]

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Eliane Coelho nas canções de O tempo e o mar, de Marcus Siqueira (divulgação, COES)
Eliane Coelho nas canções de O tempo e o mar, de Marcus Siqueira (divulgação, COES)
A soprano Isabella Luchi em cena da ópera de André Mehmari (divulgação, COES)
A soprano Isabella Luchi em cena da ópera de André Mehmari (divulgação, COES)

 

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