Quando a palavra intérprete não é suficiente

por Jorge Coli 04/05/2023

Cristian Budu ofereceu, sábado, dia 29 de abril, um recital notável na Sala Watari, em Campinas. Combinou um programa nada banal e muito pensado.

A primeira peça foi uma Fantasia em dó maior, de Carl Philipp Emanuel Bach, compositor menos frequente em recitais e concertos do que deveria. Esse segundo filho do grande João Sebastião tinha um engenho musical único, muito original, e a Fantasia revela isso. As pausas repentinas, os breves desenhos pianísticos que se interrompem, as mudanças de andamento, as surpresas harmônicas fazem parte dessa obra que soa tão singular. Cristian Budu, com sua enérgica personalidade e sua livre intuição musical, surgia ali como um intérprete ideal.

Depois, foi a Sonata opus 103, de Beethoven, obra íntima, e breve, sobretudo se pensarmos na Hammerklavier, a monumental sonata precedente, que ele compusera dois anos antes. Possui algo de livre também, algo rapsódico, na sequência alternada dos movimentos, que vai do lirismo em breves temas melódicos a tempestades pianísticas. A Fantasia de C. P. E. Bach foi como um prelúdio que de algum modo se prolongava na Sonata beethoveniana.

Por sua vez, esta última parecia prenunciar a Polonaise-fantaisie opus 61, de Frédéric Chopin, que concluiu a primeira parte do recital. Não é, nem de longe, a obra mais popular de Chopin, mas é tão rica em complexas sutilezas e, outra vez, obra de estrutura inesperada, fora de qualquer camisa de força formal. 

Budu consegue ser luminoso e denso, ao mesmo tempo. Nunca busca efeitos para cutucar o público: a música brota sob seus dedos num discurso intenso e necessário

Cristian Budu seguiu uma rota admirável ao estabelecer uma afinidade intrínseca entre seu próprio espírito musical e aquele presente nas obras que interpretou. Desse mundo íntimo, interior, feito de afetos os mais altos e os mais sublimes, o pianista passou a uma segunda parte dionisíaca e ibero-latino-americana. Começou com as Ocho valses poeticas, de Enrique Granados, que não rompia com o espírito romântico ainda impregnando o ar: elas têm algo de schumanniano.

A primeira e a última das Tres danzas argentinas, escritas por Alberto Ginastera, são ásperas, expressivas, ritmicamente muito líricas, e emolduram uma apaixonada Danza de la moza donosa, que começa suave para conduzir a um núcleo de forte expansão sentimental. A terceira, é um prodígio de virtuosidade que arrebata o público.

Enfim, o programa se concluía com Impressões seresteiras e Festa no sertão, do Ciclo brasileiro, composto por Villa-Lobos. É impressionante como Cristian Budu extrai clareza da partitura, sem perder nunca suas profundidade e originalidade pessoais: ele consegue ser luminoso e denso, ao mesmo tempo. Nunca busca efeitos para cutucar o público: a música brota sob seus dedos num discurso intenso e necessário, como se não houvesse partitura, como se estivesse nascendo ali, evidente. A palavra interpretação parece não bastar: não é uma “versão” oferecida por ele, porque ocorre união imanente que cria uma entidade sonora única.

Como bis, vieram o Ponteio nº 45, de Guarnieri, e um inverossímil Apanhei-te cavaquinho, de Ernesto Nazareth, reinventado com uma verve delirante. O público aplaude em explosão de alegria e a noite fica mais linda.

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Cristian Budu [Lucca Mezzacappa/Divulgação]
Cristian Budu [Lucca Mezzacappa/Divulgação]

 

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