Ciclo de canções da compositora francesa recebe emocionante interpretação da soprano Carla Caramujo e da pianista Priscila Bomfim
Não é de hoje que a Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, chama a atenção por sua programação criteriosa. E, apesar de seus concertos agora já estarem abertos ao público, o espaço segue com suas transmissões pela internet, para alegria de todos nós, que vivemos longe da Lapa (eu a uns 400 km de distância...). Assim, na semana passada dia 14 da agosto, assisti a uma obra rara, de Lili Boulanger, em um recital que, pelo ineditismo e qualidade, já é um dos pontos altos de toda a temporada.
A soprano portuguesa Carla Caramujo, que no ano passado estreou em Lisboa a ópera Cartas portuguesas de João Guilherme Ripper (leia mais aqui), e a pianista Priscila Bomfim, que vem se revelando uma das mais versáteis e sofisticadas musicistas de sua geração, interpretaram, em alto nível, um ciclo de canções muito especial: Clairières dans le ciel (Clareiras no céu), de Lili Boulanger. E uma canção de Olivier Messiaen.
Lili Boulanger é um caso notável na história da música. Irmã mais nova de Nadia Boulanger – uma das mais influentes pedagogas do século XX, com uma lista de alunos que inclui nomes como Aaron Copland, Philip Glass, Burt Bacharach, Daniel Barenboim, John Eliot Gardiner, Astor Piazzolla e os nossos Egberto Gismonti e Almeida Prado –, Lili, nascida em 1893, foi uma criança prodígio que com apenas 2 anos de idade já dava mostras de seu talento musical. Com 5, acompanhava a irmã nas aulas do Conservatório de Paris. Tocava piano, violino, violoncelo e harpa e com 19 anos conquistou o prestigiado e cobiçado Prix de Rome, talvez a maior honraria conferida a um compositor – aliás, foi a primeira mulher na história a vencer o prêmio. Contudo, tinha a saúde frágil e sofria doenças crônicas. Morreu com 24 anos, em 1918, por tuberculose.
O pesquisador Christopher Palmer, que estudou sua obra e se correspondeu com Nadia, escreve que Lili Boulanger “tinha a qualidade de uma estrela, uma vida apaixonada, energia interior, entusiasmo, consciência, força de pensamento, sensibilidade poética, envolvimento, intensidade de propósito, disciplina, concentração – sua vida e música são testemunhas de tudo isso, e ouso dizer que ela viveu os seus 24 anos tão intensamente quanto aqueles que atingem os 70 anos ou mais. Certamente, sua obra-prima Du fond de l’abîme (‘De profundis’) é uma obra de maturidade técnica e espiritual completa: nela ela parece ter comprimido a experiência emocional e a profundidade do insight de uma vida inteira”.
Clareiras do céu foi composta em 1914 sobre 13 poemas do simbolista Francis Jammes. A obra ecoa Debussy e a música francesa daquela época, impregnada do espírito impressionista. Em entrevista concedida a Luciana Medeiros e publicada no Site CONCERTO, Carla Caramujo afirmou: “São canções pictóricas, sensíveis, delicadas e Lili, apesar da pouca idade, cria uma obra de maturidade extraordinária. [...] Ela esteve muito próxima dos impressionistas, em especial de Fauré, que era seu mentor; e morreu no mesmo ano que Debussy. Mas eu diria que sua linguagem, aos 23 anos, se equipara à do compositor”.
No concerto da Sala Cecília Meireles, à riqueza da partitura de Lili Boulanger somou-se a ótima interpretação da dupla de artistas, que se apresentou com grande concentração e entrosamento. Mesmo assistindo pela internet, chamou a atenção a variedade tímbrica, os vibratos cuidados e adequados para o repertório e a dose certa de carga dramática da interpretação de Carla Caramujo, que, unidos ao pianismo sensível e preciso de Priscila Bomfim, resultaram em um espetáculo de alto nível artístico.
A noite estava completa, não faltava mais nada. Mas o programa ainda tinha a canção Ressurreição, do ciclo Chants de Terre et de Ciel (Cantos da terra o do céu), de Olivier Messiaen, grande mestre e figura chave da música do século XX. Escrita em 1938, a obra já habita outro universo musical, com um olhar mais voltado para o futuro.
Após a emocionante aventura musical dos 40 minutos de Lili Boulanger, Messiaen soou quase como um bis. E a ele seguiu-se outro, a linda Notre Amour, de Gabriel Fauré.
Assistir pela internet é bom, claro. Mas um recital desses, na Sala Cecília Meireles, vale uma viagem à cidade maravilhosa...
Clique abaixo para assistir ao recital de Carla Caramujo e Priscila Bomfim na Sala Cecília Meireles.
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