Kismara Pezzati e Silvia Berg falam sobre FEMINA, monólogo musicado que ganha nova apresentação em Minas Gerais
Tomar conhecimento das atividades intelectuais de uma mulher que viveu séculos atrás causa um afeto difícil de descrever: é algo como espanto misturado a um enorme alívio. Será que outras mulheres experimentam a mesma reação?
Essa é uma das perguntas que faltou fazer à compositora Silvia Berg e a mezzo-soprano Kismara Pezzati durante a entrevista que ambas concederam ao site CONCERTO a respeito de FEMINA, monólogo musicado para canto e piano que estreou no Theatro São Pedro de São Paulo em maio do ano passado e foi apresentado durante o Festival de Juiz de Fora em julho deste ano. Nesta segunda-feira, 22 de setembro, FEMINA ganha nova apresentação em Ituiutaba, Minas Gerais.
FEMINA reúne a criação de três mulheres: a poesia e o texto de Kismara Pezzati, a música de Silvia Berg e os textos, poemas e melodias de Hildegard von Bingen, monja e abadessa beneditina que viveu no século XII na Alemanha de hoje, às margens do Reno.
Hildegard von Bingen é uma dessas mulheres que o mar agitado da história fez emergir. Figura notável da Idade Média, sua música passa como um dentre os muitos saberes que ela dominava (teologia, medicina, ciências naturais, filosofia). Hildegard fundou dois mosteiros e foi uma verdadeira líder religiosa: correspondia-se com imperadores, papas e pensadores da época. Em seus textos há mais do que diplomacia: são críticas veementes, como no conteúdo da carta que escreveu ao Decano Phillipe e ao Clero de Colônia: “Vocês precisam ser um esteio estável que apoia a Igreja, como uma pilastra angular. Mas, em vez disso, fogem para a caverna dos seus próprios desejos e caem por terra sozinhos”.
Sua vida de estudos foi uma verdadeira ode ao conhecimento, que ela expressa em Virtus Sapientiae:
"Ó poder da Sabedoria,
que rodeando e compreendendo tudo
Envolve esse todo em um caminho vivente.
A sabedoria possui três asas,
Enquanto uma delas sobrevoa as alturas,
A outra se fadiga na Terra.
E a terceira, esta voa por toda parte."
Ambos os textos, além de outros, fazem parte de FEMINA, um espetáculo que faz jus à interdisciplinaridade inspirada por Hildegard von Bingen. Coloca em diálogo a subjetividade feminina a partir de uma colaboração estreita e simbiótica entre texto e música. Além disso, é um testemunho do sucesso e originalidade possíveis a partir do verdadeiro encontro entre intérprete e compositora, no tempo presente.
A primeira parte de FEMINA traz transcrições para o piano de músicas criadas para voz e percussão no projeto Hildegard Now & Then, álbum lançado pelo selo Donne em 2019, disponível on-line (também uma colaboração entre Pezzati e Berg).
A segunda parte de FEMINA traz textos originais de Kismara Pezzati. Nas primeiras apresentações Pezzati, contou com André dos Santos ao piano; para a apresentação em Minas Gerais neste segunda feira, a mezzo convida a pianista Luiza Aquino.
Silvia, como foi criar a partir dos textos da Kismara? O que esses textos comunicaram pra você?
Silvia Berg: A Kismara ofereceu textos mais espirituais e outros mais terrenos, a meu ver. Quanto mais espiritual o texto, mais harmônicos. E quanto mais o texto é, digamos, de denúncia, mais eu usei formas "terra": bossa nova, funk, xaxado, que são formas muito conectadas à audição. Mas você não vai ouvir exatamente um funk ou um xaxado ali.
Kismara Pezzati: Em alguns textos eu falei pra Silvia: “eu sinto aqui algo com o ritmo de rap; tem que ter um ritmo de rap!”. Lógico que a composição é dela, mas é uma troca muito rica. E ela também deu opiniões sobre o texto. Ela apontou quando houve alguma finalização que não estava combinando. E isso eu acho que faz o trabalho ficar muito rico, porque nós duas temos abertura para poder trocar num nível que vai a favor da obra e não a favor dos egos de ninguém.
E como foi criar com os textos da Hildegard?
S.B.: As linhas melódicas da Hildegard criam reverberações e ressonâncias, sobretudo dependendo do espaço onde você as ouve. Nesse desdobramento a melodia acaba criando um contraponto a partir da ressonância. Em um texto da época da Hildegard li que a integração do divino com o humano aconteceria quando os anjos se fizessem ouvir. E são esses os anjos: é essa relação de harmônicos que eu faço a partir de uma série que eu uso nas peças. Dependendo de alguns fatores – espaço, ressonância – esses harmônicos seriam ouvidos.
Os textos estão em várias línguas: português, espanhol, alemão...
K.P.: Os textos vêm para mim no idioma que eles querem sair. Espejo [uma das peças de FEMINA], por exemplo: ele chegou em espanhol para mim quando o escrevi, mas quando fomos fazer o espetáculo eu quis traduzi-lo para o português, porque trata de um tema que eu precisava que todos entendessem, que é a questão do abuso. Eu enviei o texto à Silvia em português e ela estranhou, mesmo não conhecendo ainda o original.
S.B.: Sim, porque tem a sonoridade envolvida. A força do texto está nessa originalidade do idioma no qual ele chegou. Quando eu pego o texto, a primeira coisa que eu ouço é essa identidade sonora, se ela tem veracidade para mim. Então, quando eu peguei Espejo em português, vi que não tinha veracidade. Ele não tem força em português, ele tem força em espanhol.
Femina também não tem aquela coisa "recitalística", por assim dizer, de uma seleção de peças para voz e piano. Há elementos de cena ali, e uma linha narrativa.
K.P.: O convite, no início, foi para fazer um recital. Mas eu não consigo fazer o recital e ficar ali, paradinha (risos). Então eu comecei a pensar em alguma coisa mais dramatúrgica. Mas não imaginei que chegaria em algo tão cênico assim. E agora está ainda mais cênico, também com a chegada do João Malatian, que está agora junto comigo na direção. Na primeira vez eu fiz tudo. Silvia fez a música e trabalhamos muito em conjunto, mas a produção, a direção, o roteiro... a concepção de como ligar esses textos para fazer disso uma história, ficou comigo.
FEMINA conta uma história mas não é um espetáculo didático, que coloca a mulher num lugar vulnerável do qual ela eventualmente sai e vence. Parece que os textos expressam mais a subjetividade feminina que vai além disso tudo.
K.P.: Não é uma história que fala da luta das mulheres contra os homens. Não vou dizer que isso não seja necessário, mas a minha luta é uma luta que vai além disso, que vai inclusive além do gênero. Eu quero falar da energia feminina, essa energia feminina que a gente busca, através do espetáculo, trazer à tona. Uma energia feminina que todos nós temos, homens e mulheres. FEMINA é esse resgate do olhar feminino.
Pensando nas mulheres criadoras do início do século XX, me vem à mente uma situação pela qual a Eunice Katunda passou quando era jovem, fazendo aulas na Europa. Ela conta para os pais, em carta: "o maestro disse que eu tenho uma energia masculina, que eu sou muito masculina". Só que ela escreve isso comemorando. Porque vem dessa ideia de que a energia criadora é masculina. Fico me perguntando sobre esse encontro com a criação de um ponto de vista feminino, no sentido de procurar justamente o feminino nessa criação.
S.B.: Do ponto de vista histórico, o século XIX vai dizer que a criação é racional e que por isso ela só pode ser masculina. E a intuição fica como própria do feminino. No caso da música, o compositor, fosse homem ou mulher, teria necessariamente uma energia masculina, enquanto o intérprete, também independentemente do gênero, teria uma energia feminina que estaria submissa a essa, digamos, energia masculina da criatividade. Eu vejo isso, na verdade, como uma interpretação muito superficial do Boécio. Ele nunca disse isso. Ele sempre apontou que essas energias eram integradas. A própria Hildegard von Bingen, no século XII, vai escrever exatamente a mesma coisa. O Guido d'Arezzo, que é um dos teóricos que eu mais adoro, vai escrever a mesma coisa. Quando a Eunice Katunda diz que tem uma energia masculina, ela está falando da energia da criação. Mas ela também era pianista, então esperava-se que ela fosse uma mulher dócil e submissa. E isso tudo é um filtro social que não tem nada a ver com a criação da obra.
K.P.: A função da arte é unir essas duas partes e parar com essa competição [entre intelectualidade e intuição, entre feminino e masculino]. Masculino não é melhor que o feminino: eles se completam, é uma coisa só. E FEMINA é sobre isso. A luta das mulheres muitas vezes vem impregnada de uma energia masculina que, a meu ver, é nociva, porque não está em equilíbrio. Eu e Silvia conversamos muito sobre isso durante a criação do espetáculo: a gente não queria ir por esse caminho, não queríamos tomar um lado só. O lado masculino completo é maravilhoso. E o lado feminino também. Mas o lado feminino tóxico também é tão ruim quanto o masculino tóxico. O que a gente combate, em FEMINA, é essa toxicidade. Eu acredito que precisamos encontrar esse equilíbrio entre as duas forças. Dessa maneira com certeza lidaríamos melhor com os conflitos.
O próprio processo entre vocês já é integrado, porque é colaborativo entre intérprete e compositora. Isso é comum na música contemporânea, mas na música de outros períodos, não. Houve uma confluência criativa entre vocês.
S.B.: Eu componho pensando nas pessoas com quem trabalho. Já fiz esse processo com pianistas, cantores, cantoras, outros instrumentistas, e eu sempre pensei assim. Ao mesmo tempo, a obra não é tão aberta a ponto de eles poderem fazer o que quiserem. A única coisa que eu não considero é o intérprete como subalterno. O intérprete está em nível de cocriação em qualquer estilo e período que ele trabalhe, seja ele o período barroco, romântico, o classicismo.
Mas quando é o caso em que a compositora está viva, e a intérprete é contemporânea a ela...
S.B.: Que também está viva, graças a Deus! (risos)
Sim, todo mundo contemporâneo e vivo. Nesse caso tem uma confluência maior, não? A compositora tem oportunidade de se deixar influenciar pelas ideias da intérprete e pode criar de acordo... Você acha que não?
S.B.: Não, para mim não. Claro que eu levo em consideração as ideias, mas quando eu estou criando, o processo é meu. Eu crio para um som muito particular, que eu sei que o intérprete terá a capacidade de produzir: eu escrevo para aquela pessoa. Ou melhor: não escrevo para a "personalidade", mas sim para a capacidade interpretativa. Quando eu escrevo para a Kismara, eu escrevo para respiração dela e para o registro dela. Eu pego o ré grave dela e trabalho com isso. Eu escrevo para essa energia do som, o som que transcende a pessoa.
Mas também tem o texto, que é de autoria da Kismara.
K.P.: Isso. Em FEMINA eu não sou só a intérprete. Eu também estou fora, no texto. Isso também possibilita que o processo criativo seja mais intrincado, porque é uma participação dupla. Eu escrevo o texto e passo pra Silvia. Aí eu recebo a música e viro intérprete. Mesmo assim, não vou me meter na maneira como ela vai compor. Isso obviamente é uma questão dela. Mas sim, a gente troca: ela comenta minha prosódia e eu aponto algumas ideias sobre onde o registro pode ir, por exemplo. A partir do momento que a Silvia leu o texto e aceitou musicar aquele texto, ela aceitou a minha ideia. Essa confiança sempre existiu.
Queria saber da Kismara como foi receber a música a partir dos textos da Silvia. O que você percebeu daquilo, da construção musical que a Silvia ofereceu para você e o resultado disso em relação ao texto que você escreveu?K.P.: Eu sempre fico super ansiosa. Acho que como a compositora fica ansiosa com o que o intérprete recebeu, eu também fico. "Meus Deus, o que ela vai fazer com o meu texto?" (risos). Mas não no sentido de medo, porque eu sempre tive confiança. Voltando ao Espejo, foi um caso muito interessante, porque quando eu recebi, eu vi que mais da metade do texto (é uma peça grande, uma das maiores do programa todo) ela deixou falado. E era exatamente o que eu queria, nesse caso: poder falar aquilo.
E não é uma música que vai só "pintar" o texto, mas que dialoga com ele. Não é uma trilha sonora que "manipula" o público, o leva a ter determinados afetos. A música dialoga de uma maneira mais profunda com o texto. Acho que esse é um outro triunfo desse espetáculo de vocês, que é realmente uma discussão contemporânea, tanto no nível do texto quanto no nível da composição.
K.P.: Eu acho que as duas frentes estão juntas, sim, dentro do mesmo nível de importância, porque elas só funcionam de forma harmônica e equilibrada quando têm a mesma força. É a mesma coisa que comentávamos sobre o feminino e o masculino: só funciona em equilíbrio. Sem essa unidade, vamos dizer assim, como obra geral, FEMINA não chegaria como a gente gostaria. Nós buscamos o toque que vai além da emoção, além do "feliz/triste". Queríamos um espetáculo que trouxesse uma reflexão e uma identificação. Queríamos que as pessoas também tivessem essa liberdade de interpretação, de sentir o que elas querem sentir.
A primeira parte do espetáculo é toda com textos de Hildegard von Bingen. Vocês estão dialogando com a obra de uma compositora antiga. Ao mesmo tempo, a composição da época da Hildegard, a meu ver, é muito mais próxima dos nossos tempos do que a composição do século XIX, por exemplo, por ser mais aberta e especulativa. Dito isso, vocês acham que a Hildegard está mais perto de vocês do que um Robert Schumann, por exemplo?
S.B.: A Hildegard é mais atual do que nunca. Ao mesmo tempo, você não pode dizer que Schumann é distante. Ele também é próximo, mas de uma outra maneira. A análise profunda das obras nos leva a esse entendimento: de que esse espaço e esse tempo na verdade não existem, porque a obra vai falar de coisas essenciais. O que é essencial em Schumann permanece, porque a obra ultrapassa a sociedade na qual foi criada. Vou te fazer uma pergunta: onde está a música?
Olha, eu acho... Eu imagino que você esteja falando da capacidade de transcendência da música. Você está falando de uma música que não tem tempo.
S.B.: É, mas onde ela está? Você não pode negar que ela existe, mas onde está? Eu vou te responder: é nesse lugar que todos os compositores se encontram. Quando você chega nesse lugar, você realmente encontra essa essencialidade. Você fala de Schumann. Onde está Schumann? Na partitura? Não. Ele está no CD? Não. Ele está enquanto está sendo executado? Talvez sim. Ele existia antes? Claro que ele existia. E ele continuou existindo depois? Sim. Então, dessa mesma forma, Hildegard e Schumann se encontram no mesmo lugar. Quando chegamos a esse lugar onde a música realmente está, encontramos tanto Schumann quanto Hildegard. Eles estão em algum lugar abstrato. Estão enquanto estrutura, enquanto sonoridade, enquanto existência. E o intérprete tem que chegar nesse lugar.
Mas você está falando ainda para além da linguagem?
S.B.: Para além da linguagem. Para além de tudo.
Você está falando de uma transcendência total.
S.B.: A música está nesse lugar e a linguagem simplesmente traduz essa música. A linguagem de Hildegard traduz essa música. A linguagem de Brahms traduz essa música. Brahms traduz, a linguagem de Schumann traduz. Então você não pode falar que Schumann é ultrapassado. Porque a música dele está nesse lugar. E você enquanto intérprete vai lá buscar. O intérprete de verdade vai fazer isso. O intérprete vai trabalhar a vida inteira para desenvolver uma técnica capaz de ir nesse lugar buscar essa música. O compositor vai passar a vida inteira desenvolvendo ferramentas para conseguir chegar nesse lugar.
Para finalizarmos, gostaria de trazer uma questão sobre pesquisa. Porque a Hildegard é objeto de estudo de vocês duas, na universidade. A criação de FEMINA tem influência da pesquisa de vocês? Como a pesquisa alimenta a criação de vocês?
K.P.: Para mim, é a contemporaneidade que encontramos na Hildegard que inspira todas as outras obras que a gente tem no FEMINA, até mesmo na segunda parte. O que mais importa para mim nesse sentido de trazer das influências é que ela via o todo. A relação texto-música e como fazer com que seja uma coisa só. E há várias outras camadas que temos a capacidade de descobrir. Isso é o que mudou a minha visão em relação à música no geral, porque com a pesquisa eu acabei tendo acesso a várias camadas que eu não tinha antes. Abriu um espaço muito maior do que aquele que eu habitava antes. Não que antes fosse um espaço pequeno, mas esse espaço foi muito mais ampliado.
S.B.: A pesquisa é assim: muitas vezes nós achamos uma resposta onde menos se espera. Você faz muitas pesquisas, e, de repente, a resposta daquilo vai estar talvez num outro teórico. Mas no caso da performance a resposta vem diretamente, e vêm diretamente da criação, da composição. Das perguntas que eu me faço. Também acontece dando aulas, porque nesse caso há um contato direto com as pessoas. Às vezes a resposta vem a mim durante uma aula que estou dando, e não exatamente num texto, numa biblioteca, ainda que isso aconteça às vezes. Mas não é somente na palavra que vem a resposta. A questão de dar educação, para mim, é muito ampla, porque é uma relação de diálogo. É uma relação de respeito com qualquer pessoa com quem eu esteja trabalhando. Adoro essa relação de respeito e de troca em qualquer nível etário. Às vezes uma criança vai me dar coisas que eu acharei maravilhosas. Então para mim, academicamente, o que interessa é esse nível de troca. E é poder passar para frente aquilo que a gente está aprendendo. Lógico que a pesquisa científica é importante. Não estou desmerecendo, é importante. Eu aprendo muito, todos os dias. Mas isso só se fica a nível intelectual e não passa. O que eu vou fazer com essa informação? O conhecimento, do meu ponto de vista, existe para ser compartilhado.
![Hildegard von Bingen [Reprodução]](/sites/default/files/inline-images/w-hlhildegard.jpg)
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