Gilberto Tinetti: seriedade, finesse, cultura e gentileza

A música clássica brasileira perdeu seu maior gentleman. Mais do que pianista, Gilberto Tinetti era um marco ético, de seriedade, finesse, cultura e gentileza.

Para todos que tentamos ser comunicadores da música de concerto, Tinetti representou um paradigma de excelência com Pianíssimo, seu programa na Cultura FM. O título não podia ser mais adequado: a própria locução de Tinetti já era uma lição de refinamento, de suavidade, com a pronúncia sempre impecável dos nomes franceses. A isso, somava-se uma seleção musical de extremo bom gosto, e um texto sóbrio, porém denso (dá para ouvir um dos programas aqui).

Gerações de pianistas também devem a Tinetti sua formação, seja como alunos particulares, seja como discípulos da USP, em cujo Departamento de Música ele atuou por décadas, atualizando e passando adiante o legado de sua mestra: Magdalena Tagliaferro. 

E, obviamente, houve também o pianista Gilberto Tinetti. O brasileiro que conheceu pessoalmente Heitor Villa-Lobos, e utilizou este conhecimento para moldar sua interpretação das obras do compositor:

 

O apaixonado pela cultura francesa que recitava Baudelaire de cor, e trazia essa bagagem para a execução da música deste país:

 

O beethoveniano que fez do Imperador seu cavalo de batalha:

 

E o camerista. Quem conheceu Gilberto Tinetti pessoalmente não se surpreenderá ao constatar que talvez seu supremo talento, ao teclado, se realizasse na música de câmara. Forma mais refinada de fazer musical, a prática camerística envolve um exercício de escuta, de predisposição ao conhecimento do outro, de troca, de aprendizado.

Camerista fora dos palcos, Tinetti foi-o de forma soberba também em cima deles. Pertenço a uma geração que ouviu até gastar ou riscar seu disco com Antonio Meneses (ouça aqui). E, ao lado de Erich Lehninger (violino) e do saudoso Watson Clis (violoncelo), Tinetti formou, com o Trio Brasileiro, uma referência camerística em um país tão refratário a esta prática, não apenas interpretando os grandes clássicos do repertório internacional, como generosamente se dedicando ao melhor repertório brasileiro (sou especialmente encantado com sua gravação do Trio Marítimo, de Almeida Prado):

 

 

Duas lembranças pessoais, à guisa de encerramento.

Em 2010, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Tinetti subiu ao palco para participar da execução do Hexameron, de Liszt, ao lado de Arthur Moreira Lima, Fernando Lopes, João Carlos Martins, José Feghali e Jean Louis Steuerman:

 

Com seus fogos de artifício e efeitos virtuosísticos, não era o tipo de repertório ao qual associávamos o pianismo de Tinetti. Contudo, ele teve um dos melhores desempenhos da jornada, demonstrando muito brio e apuro. Ao final, fui cumprimentá-lo. “Gilberto, eu não sabia que existia esse pianista dentro de você”. A resposta: “esse pianista agora vai voltar para dentro da caixa em que estava guardado”.

Outra: durante muitos anos, tive o privilégio de ser companheiro de Tinetti no júri de Prelúdio, o programa de calouros de música clássica da TV Cultura. Como costuma acontecer nessas ocasiões, às vezes concordávamos, às vezes discordávamos. E devo confessar que eu preferia quando discordávamos. Pois aí é que começava a aula. Aula de música, de estética, de estilo. Mas, sobretudo, aula de como discutir sem ofender, de como ouvir uma divergência sem se sentir ofendido. Tinetti foi professor mesmo daqueles que não tiveram o privilégio de frequentarem suas salas de aula.

Obrigado, Gilberto! 

[O velório do pianista, morto no último sábado, será realizado na segunda-feira, dia 20, no Theatro Municipal de São Paulo, das 9h às 15h]

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Gilberto Tinetti [Divulgação/TV Cultura/Jair Bertolucci]
Gilberto Tinetti [Divulgação/TV Cultura/Jair Bertolucci]

 

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