Um olhar sobre a Sinfonia doméstica, de Strauss, e a Sinfonia nº 4, de Shostakovich, atrações da Osesp nas próximas duas semanas
No curto espaço de duas semanas, a Osesp toca, na Sala São Paulo e no Festival de Inverno de Campos do Jordão, duas grandes sinfonias do século XX que são – perdoem o palavrão – antípodas radicais. Uma, a Sinfonia doméstica, que Richard Strauss compôs em 1904, é apaixonada declaração de amor à mulher e ao filho. Ele estava casado há dez anos (um de seus biógrafos, o musicólogo e crítico inglês Michael Kennedy, escreve que o casamento com a soprano Pauline de Ahna em 1894 foi “o acontecimento mais importante de sua vida”). A outra, a Sinfonia nº 4 de Dmitri Shostakovich, composta em 1935\6, foi sua derradeira obra concebida sob o signo de uma liberdade estética absoluta e por isso mesmo é uma radiografia fiel do regime estalinista na então União Soviética. Engavetou rapidamente a obra após alguns ensaios. Ela só estreou em 1961, quando Stálin já estava morto e enterrado desde 1953.
Outra coincidência que torna estes dois concertos ainda mais interessantes: o maestro Marc Albrecht, alemão de 61 anos, rege a Doméstica; e Vasily Petrenko, russo que completa 49 anos no próximo dia 7, rege a sinfonia de Shostakovich.
Dois grandes compositores, duas excelentes sinfonias que mantêm, no entanto, algo em comum: mesmo sem palavras, ambas extrapolam a condição de música absoluta. Strauss foi um campeão deste tipo de obra instrumental, enfileirou uma sequência de obras-primas, de Till Eulenspiegel, um de seus muitos poemas sinfônicos, à Sinfonia alpina, na qual descreve musicalmente suas aventuras como alpinista nos Alpes.
Já Shostakovich enfileirou obras que aparentemente são música absoluta. Mas é quase impossível duvidar, por exemplo, que seu quarteto de cordas nº 8 não esteja chorando as milhões de vítimas, sobretudo judeus, do stalinismo, mesmo com sua explicação “oficial” de que chora os milhões de mortos russos na Segunda Guerra Mundial.
O compositor francês Camille Saint-Saëns ofereceu um argumento irônico mas delicioso em relação a esta questão: “Um quadro jamais representará Adão e Eva para um espectador que não conheça a Bíblia; ele só veria no quadro um homem e uma mulher nus no meio de um jardim. Mas o espectador ou o ouvinte vibram com esta trapaça que consiste em acrescentar ao prazer dos olhos e dos ouvidos o interesse e a emoção de um tema. Não há razão para recusar-lhe este prazer”.
Concordo em gênero, número e grau. O folheto original do programa das estreias no Carnegie Hall, em março, e em Frankfurt, em junho de 1904, foi depois descartado. Mas nele havia, por exemplo, a dedicatória a sua mulher, a soprano Pauline de Ahna: “À minha querida esposa e ao nosso filho”. Ao longo da partitura Strauss inseriu expressões como “Assim como o papai”, “Assim como a mamãe”, “Brincadeira infantil, felicidade parental”, “Canção de ninar”, “Cena de Amor”, “Sonhos e Tristezas”, “Despertar”, “Briga Alegre”, “Reconciliação e uma resolução feliz".
Sei que me alonguei demais falando da Doméstica. Mas é porque a tendência natural é privilegiar a sinfonia de Shostakovich. Digo isso porque ela é em geral mais “apetitosa” pelas circunstâncias opressivas: foi abortada devido a um artigo devastador denunciando a obra como “formalista” publicado no Pravda (dizem que de próprio punho de Stálin) desancando sua ópera Lady Macbeth do distrito de Msensk. Ironia: ela fazia sucesso há tempos (dizem que ela só caiu em desgraça quando o ditador decidiu enfim assisti-la). O artigo foi publicado quando começavam os ensaios da sinfonia.
É uma história longa e controvertida em que não há consenso sobre o que de fato aconteceu. Se o compositor decidiu cancelar a estreia da sinfonia ou se ela foi proibida. É a tal “paz dos cemitérios” dos regimes ditatoriais, que dão margem a todo tipo de leitura dos acontecimentos.
Resumindo: são duas chances raras de se assistir – presencialmente ou pelo YouTube – a estas duas sinfonias importantes da primeira metade do século XX. Sei que vão me atribuir exagero em relação à Doméstica, até porque o mundo relembra em 2025 os 50 anos da morte de Shostakovich, em 9 de agosto de 1975. Mas estamos diante de duas obras de dois mestres consumados na arte de compor para orquestra no século XX. Uma longa tradição que parece esquecida na música contemporânea. Não me lembro de compositores vivos compondo sinfonias.
Veja mais detalhes sobre a apresentação da Sinfonia doméstica, de Strauss, no Roteiro do Site CONCERTO
Veja mais detalhes sobre a apresentação da Sinfonia nº 4, de Shostakovich, no Roteiro do Site CONCERTO
![O compositor Richard Strauss em pintura de Max Liebermann [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-strauss_Max%20Liebermann.jpg)
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